Os CTT, Correios, Telégrafos e Telefones, constituíram inicialmente um serviço da Administração Pública dotado de larga autonomia, tanto administrativa como financeira, mas sem personalidade jurídica. Não existindo esta, o património, designadamente imobiliário, com que trabalhavam os CTT não era um património próprio mas um património especial de afectação, pertencendo ao património do Estado. Foi este o modelo originário, aprovado em 1911, muito embora alterado por legislação posterior. Verificaram-se algumas dificuldades consagrar do ponto de vista jurídico o carácter empresarial dos CTT, o que só veio a acontecer, já com Marcelo Caetano como Presidente do Conselho de Ministros, quando foi publicado o Decreto-Lei nº 49 368, de 10 de novembro de 1969 (Determina que a partir de 1 de Janeiro de 1970 a Administração-Geral dos Correios, Telégrafos e Telefones passe a constituir uma empresa pública do Estado, denominada «Correios e Telecomunicações de Portugal», regida pelo estatuto anexo ao presente decreto-lei, e introduz alterações ao Estatuto dos Telefones de Lisboa e Porto, anexo ao Decreto-Lei n.º 48007).
“Empresa Pública” era até aí um conceito doutrinário que se podia justamente encontrar no ensino de Marcelo Caetano, mas não foi o Governo deste o primeiro a atribuir a uma empresa o estatuto de empresa pública: a nacionalização, em 1964, da exploração da Anglo-Portuguese Telephone Company pelo Governo de Salazar fez-se com previsão da criação de uma empresa pública que veio a denominar-se de Telefones de Lisboa e Porto, por força do Decreto-Lei nº 48 007, de 26 de Outubro de 1967, o qual aprovou um Estatuto que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1968.
O Estatuto dos CTT apresenta-se bastante desenvolvido, tanto mais que inexistia à data um regime geral das empresas públicas para o qual pudesse remeter,(i) e prevê a aprovação posterior de regulamentos. Não que os seus serviços não estivessem atentos à necessidade de modernização. A Direcção de Serviços de Telecomunicações da Administração-Geral havia aliás sucedido ao Laboratório Nacional de Engenharia Civil no apoio à publicação do Boletim O.M. – Revista de Divulgação de Organização e Métodos do ainda Grupo de Estudos de Organização do Trabalho Administrativo que iria dar lugar à Associação Portuguesa de Produtividade Administrativa. No domínio da gestão do património o Estatuto da agora denominada empresa Correios e Telecomunicações de Portugal previam o seguinte:
Art. 33.º – 1. Os CTT administram o domínio público do Estado afecto à exploração dos serviços a seu cargo, devendo manter em dia o respectivo cadastro, afectar-lhe os bens que nele convenha incorporar, desafectar os dispensáveis e assegurar a respectiva polícia.
- Os bens do domínio privado dos CTT afectos à exploração dos seus serviços e os demais bens que a empresa receba ou adquira para realização dos seus fins constituem o seu património privativo.
sendo que:
Art. 56.º – 1. A transferência para os Correios e Telecomunicações de Portugal dos imóveis, veículos, instalações e demais bens que integram a universalidade do estabelecimento a cargo da Administração-Geral dos Correios, Telégrafos e Telefones, qualquer que seja a modalidade de inscrição nos correspondentes registos, operar-se-á por força do artigo 3.º, n.º 1, do presente Estatuto, o qual constituirá título suficiente para todos os efeitos legais, inclusive os de registo.
- Em caso de dúvida, é título bastante para determinar a transferência prevista no número anterior a simples declaração feita pelos CTT e confirmada pela Direcção-Geral da Fazenda Pública de que os respectivos bens se incluem na mencionada universalidade.
Os CTT e os TLP foram sendo, durante anos, geridos conjuntamente até se ter criado uma Telecom reunindo os TLP e o sector de Telecomunicações dos CTT, tendo o domínio público do Estado sob administração dos CTT transitado para essa empresa. Mas os bens do Estado que o diploma de 1969 pretendiam que ficassem afectos ao sector dos Correios talvez vinte anos depois não estivessem ainda registados em nome dos CTT. Pelo menos quando a Direcção-Geral do Património do Estado, sucessora dos Serviços do Património da Direcção-Geral da Fazenda Pública(ii), teve a dúvida do que deveria fazer às centenas de processos de capa cor-de-rosa que na sua posse documentavam o registo destes bens a favor do Estado. Nos CTT a função património estava a cargo de uma Divisão cujo chefia nem estava na altura preenchida. Mostrando um espírito de iniciativa muito rara em serviços públicos a Direcção-Geral do Património do Estado tomou sobre si emitir centenas de declarações que facilitariam o registo dos imóveis afectos aos CTT, incluindo o imóvel da sua então sede na rua de S. José(iii).
Os CTT ainda empresa pública vieram a realizar uma operação de alienação de um imóvel em Coimbra, que deu origem a processo crime, mas só após a privatização se começaram a registar situações marcadamente controversas em relação ao imobiliário.
No Jornal Tornado de 11 de Abril de 2018 Investimento Público, Resgate de PPP, Reversão de Privatizações
Já a privatização dos CTT é muito mais recente, foi concertada com a equipa de gestão em funções, cujo presidente iria transitar para a gestão privada, e merecia ter sido considerada escandalosa, pois, como escrevi na altura: “Os “mercados” toleraram o que não seria normal que acontecesse: que depois de efectuada a avaliação da empresa e lançada a privatização fosse publicado um Decreto-Lei alterando o regime dos serviços postais, que o Estado viesse dizer que ia ficar com os activos e responsabilidades do fundo de pensões, mas só depois de concluída a privatização, que o Governo anunciasse que a administração ia ficar a mesma, que a licença bancária anunciada só fosse concedida pelo Banco de Portugal depois de dadas as ordens de compra.”
Acresce que, apoiando-se num mecanismo da lei – quadro das privatizações que visava dinamizar a bolsa e não maximizar a receita para o Estado (como se não fosse essa a justificação da alienação no período da troika), a privatização se fez pelo valor de avaliação, talvez excessivamente baixo e que teve em conta o padrão de actividade existente. Hoje em dia, perante a estupefacção geral, os CTT enfrentam críticas quanto ao serviço universal, conhecem problemas quanto às receitas de exploração e vêm os resultados a baixar mas distribuem dividendos superiores aos lucros. Ilegalidade? Face ao Código das Sociedades Comerciais talvez não, uma vez que, como explica a Gestmin, “accionista de referência” dos CTT , é possível distribuir “reservas livres”.
Assim o modelo de negócio dos CTT passa pela degradação progressiva do serviço postal universal e pela desactivação de instalações (com criação de postos em papelarias e juntas de freguesia), que podem ser alienadas, criando disponibilidades não afectas à exploração, e fabricando, em termos de balanço, mais reservas livres a distribuir. Há quem chame a isto “desnatação”.
Na origem desta situação não a privatização em si mas a forma de privatização adoptada pelo Governo Passos Coelho – Paulo Portas. Mas com o advento dos Governos de António Costa, o modelo adoptado não saiu minimamente beliscado, nem com Pedro Marques nem com Pedro Nuno dos Santos. Este foi inicialmente coadjuvado por Alberto Souto de Miranda como Secretário de Estado das Comunicações, (também) um homem de Aveiro de cuja capital de distrito foi Presidente da Câmara, com um currículo jurídico – económico brilhantíssimo, onde se destacava aliás uma passagem pela ANACOM, entidade reguladora, como Vice-Presidente, e que teria na mira o regresso a um cargo bancário. Nada fez para pôr os CTT na ordem, pelo contrário desvalorizou publicamente o esforço de avaliação da actividade dos CTT pela reguladora. É conhecido que o próprio Costa subscreveu até num plano geral críticas ao papel da regulação e especificamente no caso das telecomunicações fulanizou as suas reservas na pessoa do Presidente do regulador, o economista do Banco de Portugal João Cadete de Matos(iv).
Tanto o BE como o PCP defenderam a reversão da privatização. Esteve preparada uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos de que Manuel Carvalho da Silva seria um dos primeiros signatários, com vista a estabelecer o controlo público sobre os CTT. António Costa – de novo tocando um lado A e um lado B – contrapôs uma possível cessação futura de concessão por incumprimento de serviço público universal.
Escrevi na altura:
Ora tal cenário não tem a menor viabilidade, pois que a concessão, ao contrário de outros casos, não se fez com afectação temporária de um estabelecimento que regresse ao Estado no fim da concessão. Costa ilude-se ou ilude-nos. Com a privatização e mesmo que prosseguindo a sua actual estratégia de desinvestimento operacional, os CTT continuarão a ser por muito tempo a única entidade que possui uma rede de estações que lhe permitem concorrer a um eventual concurso de atribuição de nova concessão. Como explica a Gestmin, no texto já referido, ”É verdade que, ao contrário doutros casos em que é fácil ir ao mercado e procurar concorrentes, neste caso os CTT têm a tecnologia, a infra-estrutura, as pessoas, as competências”.
O facto é que Costa teve recentemente de confessar que, longe de encarar uma cessação de concessão por incumprimento de serviço público universal, tinha entrado em pânico quando se apercebeu da possibilidade de os CTT deixarem de, por sua própria decisão, assegurar tal serviço público, e daí a orientação de, através da Parpública, tentar adquirir em Bolsa uma participação no capital dos CTT, sem contudo explicar como uma participação de 13 % permitiria alterar a orientação da empresa – a circunstância de ser dessa ordem a participação do actual principal accionista, que já não é a Gestmin, não quer dizer que uma participação similar do Estado poderia prevalecer contra uma mais do que provável coligação de privados. Quanto aos 0,24 % ou seja, passe o termo, um c*g*gésimo do capital social, efectivamente adquiridos só mostram a impotência do Governo. Tão excitados os jornais económicos – assumindo novamente ligações à Direita que sempre existiram – ficaram com a inverosímil teoria de que Pedro Nuno Santos teria comprado os parceiros da “geringonça” com essa participação, que não desmontaram as incoerentes explicações de Costa, para quem o novo secretário-geral do PS os remetera com um suave sorriso. Mas nos restantes quadrantes políticos subestimou-se esta comprovação de que os governos estão agora nas mãos dos CTT, que têm obtido com facilidade decisões unânimes dos tribunais arbitrais para os seus pedidos de indemnização. O Estado vai continuar a ser ordenhado, porque o estabelecimento foi vendido com a concessão.
Entretanto os CTT, com alguma racionalidade, criaram uma empresa especializada para deter o imobiliário – a CTT Imo Yeld – e segundo notícia divulgado há dias por um dos jornais económicos, alienaram parte do capital desta à Sonae Sierra, mantendo todavia a maioria do capital. No pressuposto de que os CTT – Correios de Portugal ficarão a pagar renda à CTT Imo Yeld pelas instalações utilizadas na exploração da actividade postal, o Estado, se quiser, poderá vir por via de nacionalização da participação dos CTT na imobiliária, criar a possibilidade de no caso de ser necessário pôr fim à concessão do serviço público universal à CTT – Correios de Portugal, e abrir um concurso competitivo, afectar à concorrente vencedora a rede de imóveis imprescindível para o exercício da actividade postal.
Deste modo manter-se-ia a entrega ao “mercado” da actividade postal mas repor-se-iam as condições de mercado para a escolha da concessionária de serviço público universal . Seria necessário é certo indemnizar o accionista CTT – Correios de Portugal, manter uma negociação permanente quanto às condições de utilização das instalações, enfrentar as diatribes do senhor editor económico do Público – que muito recentemente assinou um inflamado artigo de opinião contra o Governo acusado de pôr em causa a privatização dos CTT – e gerir muito bem o relacionamento com a Sonae Sierra, afinal uma pedra essencial do grupo a que pertence o jornal.
A alternativa é pagar chantagem, sob a forma de concessão do serviço público universal na área postal.
Notas
(i) Que só veio a existir em 1976, após concluído o ciclo de nacionalizações, com o Decreto-Lei nº 260/76, de 20 de Abril.
(ii) Hoje em dia os antigos Serviços do Tesouro e Serviços do Património voltaram a estar reunidos na Direcção-Geral do Tesouro e Finanças.
(iii) Para que conste, como a Direcção de Serviços a quem este assunto incumbia não tinha pessoal foram os funcionários da Divisão de Aquisições e Arrendamentos para o Estado que, em tempo recorde e a título voluntário compulsou todos estes processos e preparou todo o expediente.
(iv) Que iniciou a sua militância no PS na época em que o próprio António Costa começava a sua. Curioso…