Três semanas depois da passagem do ciclone Idai que afectou severamente três estados da África Austral, e enquanto continuam os esforços locais e internacionais para levar algum auxílio às populações atingidas que mitigue a calamidade, começa a ser a altura de olharmos para a situação além das piedosas notícias solidárias.
Três semanas depois da passagem do ciclone Idai – uma tempestade tropical de categoria 3/4 que afectou severamente três estados da África Austral, Moçambique, Malawi e Zimbabwe, e que provocou alguns danos tão longe quanto a África do Sul e Madagascar (todos membros da SADC, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral que é uma organização inter-governamental criada em 1992 e dedicada à cooperação em matérias de política, segurança e integração socioeconómica, que agrupa a África do Sul, Angola, Botswana, República Democrática do Congo, Lesoto, Madagascar, Malawi, Maurícia, Moçambique, Namíbia, Seicheles, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabwe) – e enquanto continuam os esforços locais e internacionais para levar algum auxílio às populações atingidas que mitigue a calamidade, começa a ser a altura de olharmos para a situação além das piedosas notícias solidárias.
Depois dos ventos ciclónicos e das cheias dos rios provocadas pelas chuvas contínuas, causadoras de inundações que apagaram tudo no seu caminho, a região debate-se agora com os problemas originados pela deslocação maciça das populações, a necessidade de acolhimento e tratamento dos feridos e da eliminação dos cadáveres, não é surpreendente que tenham surgido casos da cólera, doença transmitida pela água contaminada e endémica na região. Com o apoio da Organização Mundial de Saúde cerca de um milhão de doses de vacinas contra a cólera estão a ser encaminhadas para a região a fim de evitar mortes que se podem estender aos milhares.
Na área mais directamente atingida pela tempestade e pelas inundações que se lhe seguiram foram destruídas casas, plantações, empresas e instituições públicas paralisando a vida normal; na estratégica cidade portuária da Beira, localizada na província central de Sofala, que estava a registar um crescimento exponencial nas últimas duas décadas, com a população a aumentar mais de 100% desde 1997 e com reforçadas perspectivas de desenvolvimento económico devido à descoberta de grandes quantidades de recursos de gás natural na plataforma offshore do Oceano Índico, estima-se que 90% da infra-estrutura do município tenha sido destruída e embora o porto propriamente dito, indispensável para os estados interiores da Zâmbia, Malawi e Zimbabwe, permaneça praticamente intacto, o seu processo de recuperação pode levar anos devido ao nível de destruição nas áreas circunvizinhas.
Os três estados que foram o epicentro de Idai, tal como a maioria dos seus vizinhos e parceiros da SADC confrontam-se há longo tempo com forças políticas e económicas impostas pelos países industrializados ocidentais. Moçambique, apesar dos seus recursos naturais e localização estratégica, com um sector agrícola que fornece 90% dos produtos alimentares domésticos – com culturas como mandioca, milho, arroz, chá, tabaco, açúcar e feijão e onde o algodão é a principal cultura agrícola de exportação do país –, foi obrigado a renegociar em 2018 os termos das suas obrigações financeiras a nível internacional.
Para esta situação muito contribuirão as deficientes infra-estruturas dum país onde devido a contínuos problemas nos sectores de armazenamento e transporte, estima-se que 30 a 40% dos produtos alimentares apodreçam enquanto aguardam para serem enviados para os seus mercados de destinos, e onde as colheitas e o gado são frequentemente ameaçados devido a secas e a inundações, responsáveis nas últimas duas décadas pela deslocalização de centenas de milhares de pessoas.
Até as indústrias extractivas – sector de actividade onde se incluem as de minério de ferro de alta qualidade e a tantalita (mineral raro e de importante aplicação na indústria electrónica, que é a principal fonte de tântalo) dos quais Moçambique tem as que podem ser as maiores reservas do mundo, a par com o ouro, a bauxite (principal minério de alumínio) ou a ilmenite (uma importante fonte de titânio, que se projecta minerar em Moma na província de Nampula) e as areias minerais pesadas na província da Zambézia – a par com um sector energético, onde se destaca a actividade de perfuração de petróleo e gás natural (a exploração de campos de gás natural em Pande e Temane, na província de Inhambane, poderá ser um relevante factor de impulso tanto para o comércio externo como para o consumo interno), que têm sido o foco da actividade económica no actual período de desenvolvimento e podem proporcionar um potencial acrescido, mas ainda não confirmado, para a aquisição de meios financeiros para constituir Moçambique numa grande base económica dentro do subcontinente e entre os 16 membros da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral.
Moçambique, como a generalidade das economias africanas que foram alvo da colonização ocidental, sofre de uma crónica falta de infra-estruturas materiais e humanas que os resultados da exploração dos recursos energéticos nos últimos anos, pareceram poder alterar, mas as esperanças de uma promissora descolagem económica foram contrariadas com o declínio nos preços das matérias-primas a partir de 2014 (especialmente as agrícolas), factor que juntamente com os empréstimos garantidos pelo ocidente e outras obrigações financeiras, desacelerou o crescimento. Outros desafios incluem ainda o aparecimento, em 2017, de um grupo armado “islamita” no norte do país (precisamente na região que apresenta especial interesse mineiro) que se envolveu em acções de sabotagem de infra-estruturas e assassinatos de civis, com a consequente canalização de recursos para as questões de defesa e segurança, que eram tão necessários noutras esferas da economia.
A realidade tem vindo a demonstrar que a “reestruturação” capitalista das economias africanas pós-coloniais durante as três décadas finais do século XX não melhorou o padrão geral de vida dos trabalhadores, agricultores e jovens africanos. Actualmente, há o ressurgimento do atoleiro da dívida africana decorrente do declínio nos preços das matérias-primas e da falta de relações económicas continentais interestaduais, pois enquanto os estados africanos continuarem a ser parceiros minoritários dentro do sistema capitalista mundial, estes problemas continuarão a minar o desenvolvimento sustentável e a soberania da região.
A ideia lançada em Março de 2018 da criação de uma Área de Comércio Livre Africano pode ser um passo positivo e na direcção correcta quando coloca um foco especial no desenvolvimento para o benefício das pessoas; no entanto, este esforço de integração económica nunca poderá atingir o seu pleno potencial se permanecer dentro de um sistema global de produção e comércio liderado pelo Ocidente.
Ás questões de natureza puramente económica somam-se ainda as do foro ambiental, onde o aquecimento do planeta, incluindo as águas oceânicas, é frequentemente responsabilizado pelo agravamento do impacto dos ciclones e outros problemas relacionados ao clima, que colocam Moçambique e os outros países da região na linha de frente da luta contra as mudanças climáticas num continente aricano onde a maioria das nações tem poucas infra-estruturas e reduzido financiamento para lidar com isso.
A contínua dependência económica e as rápidas mudanças climáticas devem ser abordadas como questões de política externa que ameaçam o desenvolvimento futuro dos estados da África Austral. Por se tratarem de questões de natureza política, aquele imperativo requer uma colaboração continental entre todos os estados membros da União Africana (UA), na medida em que exige atenção e correcção imediatas para assegurar que o continente alcance todo o seu potencial, o que deverá resultar numa genuína independência e sustentabilidade.
A calamidade que atingiu Moçambique e os países vizinhos deverá constituir uma oportunidade para repensar a agenda estratégica da UA, sem esquecer que a repetição de uma abordagem de natureza e contornos exclusivamente capitalista só pode levar a mais gerações atormentadas pela pobreza, a incerteza e o subdesenvolvimento.