A opção da actual administração norte-americana pela aplicação de tarifas alfandegárias protectoras, invariavelmente classificada na Velha Europa como atentatória do livre comércio e fruto de um governo errático, talvez deva ser vista numa perspectiva diferente; a de um sistema político-económico que se reconhece à beira de um precipício, sempre negado, mas cada vez mais próximo e mais profundo.
As tarifas punitivas, apresentadas por Trump como uma via para o fortalecimento do investimento e da produção interna, sustentadas no argumento dos desequilíbrios das balanças comerciais, não passarão afinal de um meio para atingir o principal objectivo da sua administração de abrir uma frente de “guerra” com a China e promover uma espécie de reajustamento interno por via da redução do consumo e do aumento do investimento . Isso mesmo parece ressaltar do constante jogo de avanços e recuos (moratórias incluídas) e da própria sustentação técnica do seu cálculo, que, focada exclusivamente na balança de mercadorias ignora os superavits das balanças de serviços, revela uma completa ausência de fundamentação teórica e é denunciada pelo primitivismo, pela arbitrariedade e pela completa ausência de ponderação (nada de novo na gestão privada e pública de Donald Trump) com que tem sido apresentada e aplicada.
Escudada na palavra de ordem «Make America Great Again», a estratégia de Trump revela todo o seu simplismo quando pretende lançar uma política de reindustrialização nacional num ambiente profundamente globalizado e numa conjuntura em que os altamente endividados EUA revelam evidentes sinais de falta de capacidade financeira, que ele agrava com a sua verborreia e inconsequente jactância.
E é precisamente na área do investimento e da produção interna que os desejos da trumponomics podem colidir com a dura realidade depois de entre os primeiros anúncios de reacções dos países mais atingidos pelos agravamentos tarifários, a China ter respondido com tarifas de 84% às importações dos EUA e Trump ter reagido com a aplicação de tarifas de 104% contra aquele país asiático, logo respondido por este a carregar nas tarifas até aos 125%. Este clima de parada e resposta originou fortes quebras nas bolsas mundiais, com as bolsas dos EUA a fecharem, no início de Abril, a pior semana de perdas desde Março de 2020 e a uma reacção do poder económico-financeiro que terá induzido alguma contenção na administração norte-americana que levou Trump a anunciar uma pausa de 90 dias para os países que quisessem negociar e a agravar as tarifas à China para 125% e mais tarde corrigida para os 145%.
Esta aparente pausa na escalada das tarifas alfandegárias ocorreu depois de conhecida a notícia que a China tinha avançado com artilharia pesada e estava a vender 50 mil milhões de dívida dos EUA e da consequente corrida à venda de dívida pública norte-americana de longo prazo (10 anos e mais).
Deslocando a “guerra” do campo comercial para o financeiro, os chineses estão a visar o ponto fraco de uma economia altamente endividada e fortemente dependente de capitais externos. A China não é apenas o segundo maior credor de dívida norte-americana (o primeiro é o Japão), é talvez a única economia capaz de enfrentar a política de intimidação posta em prática pela Casa Branca, do mesmo modo que o Império do Meio não é apenas o principal produtor e exportador mundial de bens, mas também a segunda maior economia e a potência que revela maior capacidade para formular alternativas e aplicar estratégias de longo prazo.
Ao aumentar a pressão para a venda de títulos de dívida dos EUA (e com reconhecida capacidade para o continuar a fazer, pois os referidos 50 mil milhões de dólares representarão apenas cerca de 6% da sua carteira daquela dívida), a China forçou a queda do preço e a reação dos mercados foi imediata, com os juros dos títulos a 10 anos do Tesouro norte-americano a dispararem para valores que quase anularam a queda registada após os tonitruantes anúncios da nova política tarifária norte-americana, dando início a uma subida geral dos juros que deve ser a última coisa que os americanos desejarão num momento em que se apresentam altamente endividados e pretendem relançar o investimento na sua economia.
Além do efeito prático já referido, a reacção chinesa apresenta ainda outra virtude: a de mostrar que os fanfarrões devem ser enfrentados, não com as melífluas cortesias imediatamente respondidas com a habitual boçalidade de Trump, mas com respostas cirurgicamente orientadas para os seus pontos mais fracos. A propósito, já se interrogaram sobre a razão das tarifas se aplicarem apenas aos bens importados e não incluírem os serviços?
Sendo os EUA grandes exportadores de serviços não será a altura da resposta apontar precisamente aos magnatas de Wall Street e de Silicon Valley e grandes apoiantes de Trump? Ensaie-se a resposta mediante a aplicação de fortes restrições ao Google ou à Amazon, obrigue-se a Meta (Facebook e WhatsApp) e a X (antigo Twitter) a alojar a informação europeia em servidores na Europa e veja-se qual será a reacção.
Porém, não é nada disso ao que temos assistido e enquanto alguns se perfilam para negociar as tarifas com Donald Trump, os tristes líderes europeus ainda andam à procura de resposta comum; não se estranhe pois que ao nível do nosso pequeno país pouco mais se tenha ouvido que uma intenção do governo de preparar um apoio de mais de 2.000 milhões para mitigar as tarifas que inclui o reforço de linhas de crédito à exportação e de seguros de crédito, bem como apoios à diversificação de mercados, competitividade e inovação, não faltando sequer o oportunismo da AIP que já veio propor apoios à tesouraria das empresas e ao investimento directo nos EUA, que é precisamente o que em caso algum deverá merecer apoio público. Se as empresas quiserem acomodar a chantagem de Donald Trump deverão fazê-lo com os seus próprios recursos e assumir a totalidade dos riscos, naturalmente acrescidos pela instabilidade económica gerada.
Recorrendo a um modus operandi que há muito lhe é reconhecido (e louvado pelos seus seguidores), Trump tem “disparado” em todas as direções – começou por impor tarifas aos vizinhos México e Canadá para depois as generalizar a todos os parceiros económicos – e afirmado tudo e o seu contrário, procurando aterrorizar tudo em redor para depois recuar e se afirmar como o “salvador” do Mundo. O problema é que desta vez o arruaceiro terá escolhido uma “vítima” menos complacente e dotada de vontade e capacidade para o enfrentar.