Nota dos reitores do Santuário Nacional de São José de Anchieta acusa a tentativa da direita de manipular o legado de Anchieta.
Em dura e elegante nota divulgada no sábado 25 de maio, o reitor e o vice-reitor do Santuário Nacional de São José de Anchieta (localizado em Anchieta, ES), respectivamente Pe. Nilson Marostica e Pe. Bruno Franguelli, ambos jesuítas, rejeitaram o projeto de lei nº 3033/2019, que propõe a troca Paulo Freire (1921/1997) pelo padre José de Anchieta (1534/1597)como patrono da educação brasileira.
O PL foi apresentado em abril pelo deputado Federal Carlos Jordy (PSL-RJ) e tem o apoio do chefe do executivo, Jair Bolsonaro.
Em sua ignorância direitista, o deputado afirma, na justificativa do projeto, que a “alteração do símbolo da educação como meio de iniciar as mudanças necessárias é fundamental para o combate cultural de idolatria a pessoas, que, de fato, em nada contribuíram positivamente para a educação e, também, como meio de homenagear quem realmente merece.” Segundo ele, “não adianta pedir a cassação do título de patrono da educação de Paulo Freire sem antes elencar um legítimo nome para ser o verdadeiro patrono”.
Em reação contra esta intenção do deputado, a “Nota Oficial do Santuário a respeito do legado de São José de Anchieta”, assinada pelos reitores do Santuário Nacional de São José de Anchieta, não mede palavras para rejeitar a mudança proposta. Manifesta preocupação com o projeto de lei e diz que Anchieta e Paulo Freire “caminham na mesma direção. Ambos optaram por estar a serviço da educação dos marginalizados.”
Ressaltando que o padre José de Anchieta merece “todo louvor e reconhecimento pelo imenso bem que fez” ao Brasil, sobretudo na educação, enfatiza que, “na atual conjuntura governamental de nosso país, não podemos aceitar que o legado de São José de Anchieta seja instrumentalizado para fins meramente ideológicos”, e reconhecem a “imensa importância do legado de Paulo Freire para o Brasil e para o mundo”.
Anchieta, dizem, foi como ele um “pedagogo do oprimido” que “optou por estar ao lado dos indígenas e educá-los, defendê-los e protegê-los da ambição dos poderosos.” E justificam a recusa dizendo que “Anchieta não pode ser proclamado patrono da educação em um momento em que a educação não parece ser prioridade na agenda do país. O primeiro defensor do meio ambiente não pode ser admirado em um momento em que nossas riquezas naturais estão ameaçadas. O primeiro indigenista não pode ser reverenciado neste momento em que vemos tribos étnicas desamparadas e sendo perseguidas e até expulsas de suas terras. O primeiro defensor dos direitos humanos não pode ser elevado aos altares da Pátria quando os indefesos são marginalizados e seus direitos negados. São Jose de Anchieta não pode ser usado com fins ideológico”. E terminam a nota pedindo respeito ao “valiosíssimo legado” de Anchieta, “que deve sim ser imitado mas jamais manipulado”.
Anchieta, que o papa Francisco declarou santo em 2014, é também o apóstolo do Brasil, onde chegou no início da colonização, em 1553. Tinha 19 anos de idade. Aqui desenvolveu uma obra notável na catequização e educação dos indígenas, e em sua defesa contra a escravização pelos colonos; foi também poeta – entre suas obras está “De gestis Mendi de Saa”, que descreve a guerra dirigida pelo governador geral contra os franceses que ocuparam o Rio de Janeiro. Foi também gramático, sendo o autor da primeira gramática em língua tupi. Junto com outro jesuíta, Manoel da Nóbrega, participou da criação do Colégio de São Paulo, embrião da futura metrópole brasileira.
Paulo Freire, patrono da educação no Brasil, desde 2012 (por iniciativa da deputada federal Luiza Erundina) é autor de alguns clássicos da pedagogia – entre elas “Educação como prática da liberdade” e “Pedagogia do oprimido”. Obras que o deputado Jordy revela não conhecer quando considera, erroneamente, que Paulo Freire não contribuiu para a educação brasileira. Ou melhor, contribuiu para a educação crítica, libertadora, destinada a formar homens livres de pensamento livre – atividade que o deputado de visão retrógrada e seus parceiros da chamada “escola sem partido” desprezam e querem eliminar. Além da contribuição para a educação no Brasil, a obra de Paulo Freire tem impacto mundial.
Em 2016, a Open Syllabus descobriu que, em mais de um milhão de programas de estudos universitários nos EUA, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia “Pedagogia do Oprimido” ficou em 99º lugar entre os livros mais pesquisados, colocando Paulo Freire na segunda melhor colocação na área da educação. Outra pesquisa, feita na London School of Economics, revelou que “Pedagogia do Oprimido” é o terceiro livro mais citado no mundo na área de Ciências Sociais.
A direita brasileira evidentemente rejeita toda homenagem a um pensador social e crítico como Paulo Freira. Sob a ditadura de 1964, ele teve que exilar-se e só voltou ao país em 1979, depois da Lei de Anistia. Agora, querem bani-lo das escolas. Mas não conseguirão – Paulo Freire, em companhia de José de Anchieta, está no coração dos brasileiros e de sua luta pela liberdade. Este é o sentido democrático da nota divulgada pelos reitores do Santuário Nacional de São José de Anchieta.
Texto em português do Brasil
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