“uma cirurgia não é uma mercadoria e muito menos um espetáculo para ter público. Há que deixar as nossas coronárias, vesículas e fígados de fora dessa cultura que degrada o ser humano”.
João Semedo
Há escritos que não se desejam publicar mas a que se é compelido por respeito a princípios e apego ao bem comum. Quem sempre defendeu a liberdade de expressão e lutou pela existência de uma imprensa livre não pode, hoje, por ação ou omissão pactuar com a delapidação de tais valores. Que “todos têm direito a exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações” é uma consagração constitucional estruturante da democracia portuguesa que urge valorizar e que não pode continuar a ser pervertida em negocismos sem escrúpulos.
A gravidade da situação pandémica que as sociedades enfrentam coloca-nos perante um quadro de responsabilidades comuns e individuais a que ninguém se deve furtar. Para salvar vidas e defender a saúde de todos e de cada um, há decisões, ações e cuidados que são essenciais mas há também um conjunto de pressupostos básicos, quiçá decorrentes do mais elementar bom senso, que certamente devem merecer um muito alargado acordo.
Talvez valha a pena resumir algumas dessas verdades simples.
- Para o sucesso de uma luta comum, unir esforços e secundarizar diferenças é preferível a fomentar divisões, “capelinhas” e desentendimentos.
- Perante o cansaço ou o laxismo, valorizar os sucessos, promover a confiança e a responsabilidade é muito mais frutífero do que instigar a descrença, a confusão e o desânimo.
- Na prossecução do bem comum, o empenho, a determinação e a perseverança são bastante mais valiosos do que o alarmismo, o medo e a precipitação que conduzem ao bloqueamento pessoal e institucional.
- Numa batalha conjunta, serenidade, ação, colaboração e modéstia ajudam muito mais do que a profusão de ‘opinismos’, agitações, vedetismos e competições.
Se assim é não há indulgência possível face ao comportamento assumido pela quase generalidade dos mass media com a conivência ou o silêncio de demasiados intervenientes na esfera pública.
Frenesins
As opções e atuações concretas da maioria dos órgãos de comunicação corporativos não apenas estão a contribuir para um evidente avolumar do mal estar social e individual, para a ampliação de um clima de crispação e conflitualidade como estão objetivamente a dificultar a resposta coesa à pandemia e a eficácia no salvamento de vidas.
Há meses que se assiste nos mass media à utilização da Covid19 ao sabor das ‘guerras de audiência’ e como pretexto para a exponenciação de um jornalismo muito ‘competitivo’, ‘assertivo’ e ‘innovative’. A pandemia é uma realidade muito grave que exige respostas difíceis, empenhadas e solidarias mas está a ser usada pelos mass media como uma espécie de ‘reality show’ permanente para captação de clientes e endoutrinação de consumidores.
As televisões ocupam horas e horas a correr atrás de ‘casos’ particulares , descontextualizados e o mais dramáticos possível donde extraem generalizações abusivas e constroem avaliações distorcidas. Seguramente que com um ‘caso’ negativo exaustivamente explorado conseguem ganhar mais “share” do que se relatassem a situação geral também com os sucessos e o empenho de quantos diariamente lutam contra a pandemia.
Sabe-se que no mundo dos mass media, sobretudo nas televisões, há muito que se ignoram os cães que mordem em homens porque apenas interessa quando os homens mordem em cães, mas a pandemia não deveria ser um campo para esse apego ao sensacional. A constante busca do anómalo, do imprevisto, do oculto, do extraordinário, do chocante, do indignante conduz hoje os mass media à centração exaustiva no que é dramático, na obsessão exclusiva pelo que está mal, ao exercício caricatural de um contra-poder sem rumo e à catalisação da cultura do ‘bota-abaixismo’
A desconfiança, o ceticismo e o criticismo foram convertidos nos condimentos indispensáveis para abordar a realidade. Nas reportagens, entrevistas, comentários ou outras peças “informativas” apenas interessa descobrir, radicalizar ou mesmo inventar o que possam ser contradições, insuficiências ou erros. Temos assistido horas a fio à critica-pela-crítica, ao justicialismo frenético e ao alimentar de acusações infundadas muitas vezes com o recurso à distorção de dados, à manipulação de opiniões e de factos assim como a frequentes práticas de condicionamento de pontos de vista para os enformar à visão mediática dominante. Tornou-se banal nas televisões que os únicos discursos aceites como “interessantes” são os que confirmam os enfoques noticiosos pretendidos ou que ilustram as opiniões previamente construídas sobretudo quando estas constituem abordagens negativas dos acontecimentos.
Se não fosse tão grave seria risível o frequente desânimo dos jornalistas quando o seu bombástico criticismo é serenamente infirmado por médicos, enfermeiros, administradores ou doentes que, da ‘linha da frente’, esclarecem as dificuldades e serenam exaltações. Ou quando repórteres e entrevistadores se exasperam e cortam a palavra sempre que as opiniões dos entrevistados não servem apenas para reforçar as ideias alarmistas que as televisões pretendem inculcar. Já se tornou banal assistir a entrevistas e reportagens em que os jornalistas sistematicamente concluem o contrário do que os entrevistados disseram ou em que estes se veem obrigados a repetir inúmeras vezes as mesmas frases na vã tentativa de não lhes serem atribuídas afirmações que não fizeram.
Para os media corporativos a ‘informação’ que vende tem que ter a facilidade da ‘literatura para tótós’ e as narrativas que interessam não podem ser mais que o somatório de ‘sound bites’ pelo que, segundo eles, a realidade tem que se enformar neste modelo comunicacional vigente.
A linearidade e o facilitismo parecem ter-se tornado os únicos óculos aceitáveis para olhar os acontecimentos. O colorido das televisões serve apenas para realçar o preto-e-branco e o imediatismo das suas visões. Se morrem pessoas então apontem-se os culpados, se há doentes alguém falhou em evitá-lo, se a infeção alastra é porque erraram no planeamento, se os hospitais estão a ficar sobrelotados seguramente que a gestão foi incompetente, se há infetados é por incúria dos próprios ou de outrem, se a pandemia se agrava é porque ‘eles’ optaram erradamente por defender a economia, se a crise económica alastra é porque ‘eles’ privilegiaram abusivamente a saúde, se há doentes a serem triados nas ambulâncias para não se acumularem em salas de espera logo se anuncia que os hospitais estão um caos, se alguém diz que uma medida está ser ponderada e outro diz que ainda não foi o momento de adotar essa medida logo se conclui que ‘eles’ estão a contradizer-se e que reina a desorientação entre ‘eles’ e se alguém refere uma dúvida de imediato os media descobrem que isso decorre de uma frontal oposição a ‘eles’.
Não há complexidade, não há evoluções decorrentes da temporalidade, não há dimensões contraditórias que têm que ser ponderadas, não há equilíbrios que devem ser salvaguardados, não há contextualização dos factos, não há situações por vezes intransponíveis, não há insuficiências ou mesmo erros que sejam expectáveis, não pode haver flexibilidade e gradualismo na ação.
Os mass media parecem existir para simplificar e concluir sobre as realidades numa espécie de julgamento permanente em que importa mais apontar culpados do que contribuir para a compreensão dos factos.
Dir-se-á que muitos destes traços não são novos e decorrem da evolução de uns meios de comunicação cada vez mais mercantis, onde o nivelamento competitivo tem vindo a ser sucessivamente feito por baixo e onde a promoção da mediocridade é que dá lucro. É verdade, mas em tempo de pandemia a gravidade dessa deriva assume consequências especialmente preocupantes.
Colaborações
Infelizmente esta atuação dos mass media tem contado com excessivas benevolências e algumas inesperadas colaborações. Talvez com alguma ingenuidade mas certamente com incompreensível deslumbramento pelos palcos mediáticos, improváveis atores da vida política e científica têm colaborado objetivamente na farsa da pseudo-informação sanitária e no jogo hipócrita de ‘esclarecimento’ social de que os media se auto reivindicam.
Curiosamente há uma regra implícita nas colaborações aceites pelos media. Especialistas, políticos, cientistas, ou outros, para terem direito a ‘cinco minutos de fama’ devem catalisar a crítica, explanar problemas ou, melhor ainda, exponenciar descontentamento uma vez que as reflexões mais equilibradas que apontem sobretudo para a racionalidade e a compreensão ou que procurem contribuir para a solução dos problemas não são desejáveis nos media em tempo de pandemia e, quando existem, servem apenas como exceções para branquear a regra.
Obviamente que o sentido crítico é sempre útil e o ‘clubismo’ partidário ou a cegueira ideológica constituem vieses perversos para a democracia constitucional. Mas não é disso que se trata nos mass media.
Sejamos claros, nada do que está a ser promovido nos órgãos de comunicação corporativos é fortuito. Só no falso mundo virtual todo este manancial de despautérios pode ser visto como um acaso ou um equívoco. Tudo o que acontece nos media é sempre produto de estratégias minuciosamente programadas e dirigidas.
Razões
A crise pandémica tem sido considerada pelos donos da arena mediática como uma excelente oportunidade para a manipulação dos portugueses e para a condução de uma campanha política e ideológica com objetivos precisos. A agenda oculta dos detentores do ‘quarto poder’ além de estar ao serviço da ambição e da vingança dos grupos negociantes na doença visa mais longe e tem propósitos de médio e longo prazo.
A hostilização dos responsáveis políticos que contribuíram para a recente aprovação da Lei de Bases da Saúde e dos que defendem o reforço do Serviço Nacional de Saúde é apenas uma componente primeira de uma cruzada mais vasta. O que está na base desta ofensiva é a criação das condições para que a crise pandémica, económica e social sirva de plataforma motivadora para pôr em causa o ‘Estado social’ e para facilitar a recomposição partidária que assegure a mais fácil apropriação, pelos ‘do costume’, das verbas da dita ‘bazuca’ europeia.
Se o frenesim mediático ganhou maior evidência não é, essencialmente, por inépcia dos seus operadores é, antes, porque o tempo urge e a manipulação dos portugueses não está a ter a facilidade e os resultados desejados pela ‘elite económica’ dominante. A situação pandémica, ao contrário do que previam, não está a ser facilitadora da inculcação do receituário neoliberal e da captação populista dos trabalhadores e é sobretudo por isso que assistimos à sobre-utilização das suas ‘correias de transmissão’ comunicacionais para ampliar o alarmismo, o medo e o descontentamento.
Há períodos em que é especialmente importante valorizar a unidade, destrinçar o fundamental do acessório e saber com clareza de que lado se está. Este é seguramente um desses momentos. É simples, mas verdadeiro, perceber que neste tempo de pandemia ou se está do lado da vida e do SNS ou se está contra, não há terceira via.
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