O texto que inspirou Scorsese chegou há vinte anos ao cinema português.
Sessão na sexta feira, 17 de Março, às 21h30
Muito se tem falado nos últimos tempos de Martin Scorsese e do seu filme “O Silêncio”, adaptação ao cinema do romance homónimo do escritor japonês Shusaku Endo. Pouco se falou no entanto no facto de em 1996 (há mais de vinte anos!) João Mário Grilo ter recorrido ao mesmo texto para construir uma abordagem, na nossa opinião mais interessante que a do muito estimável cineasta norte-americano, da influência dos jesuítas portugueses no Japão na passagem do século XVI para o século XVII e de como essa marca ainda é visível na sociedade nipónica dos nossos dias.
“Os Olhos da Ásia”
Produzido por Paulo Branco, “Os Olhos da Ásia” (é esse o título do filme de João Mário Grilo) foi exibido no início do passado mês de Fevereiro em Lisboa, no Espaço Nimas, numa sessão seguida de debate com o realizador e com o padre (e poeta) José Tolentino de Mendonça, Vice-reitor da Universidade Católica.
Um mês depois, no Porto, no Teatro Rivoli teve lugar uma iniciativa idêntica que contou com a presença do autor do filme e de Rui Nunes, padre jesuíta e professor da Universidade Católica/Porto, que proporcionaram ao público, que encheu o Auditório Isabel Alves Costa e do qual fizemos parte, a oportunidade de conversar demoradamente sobre as múltiplas leituras que o filme suscita.
“Imagens da Ásia no Cinema Português”
Decidimos elaborar o presente texto como chamada de atenção para mais uma oportunidade que os cinéfilos lisboetas têm para ver “Os Olhos da Ásia”. O filme passa na Cinemateca Portuguesa (Rua Barata Salgueiro) na próxima sexta-feira, 17 de Março, às 21h30 e está integrado num programa denominado “Imagens da Ásia no Cinema Português”, organizado pela Cinemateca em colaboração com o Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Desta vez, será Jorge Santos Alves, professor da Universidade Católica e estudioso da presença portuguesa no sueste asiático, que acompanhará o cineasta na apresentação e comentários ao filme.
Esta será, provavelmente, a oportunidade de os espectadores verem o filme nas melhores condições. Os equipamentos de projecção e de leitura do som têm evoluído ao longo do tempo e hoje em dia já são poucos os locais em que se pode ver um filme feito há vinte anos respeitando as características técnicas da época em que foram feitos. Se calhar só na Cinemateca… No Rivoli as coisas não correram muito bem. A projecção foi sempre acompanhada por um ruído que não faz parte da banda sonora.
O filme de João Mário Grilo
Falemos então um pouco de “Os Olhos da Ásia”. O filme de João Mário Grilo, estreado no Festival de Locarno de 1996, usa como se disse o mesmo romance que Scorsese adaptou mas começa a narrativa bastante antes, nas últimas décadas do século XVI, quando quatro jovens japoneses educados pelos missionários jesuítas portugueses são enviados a Roma (e Lisboa) para dar testemunho da conversão do Japão ao cristianismo.
Um deles é Julião Nakaura que, décadas mais tarde, partilhará a cela com o padre Cristóvão Ferreira (interpretado por João Perry). Ambos serão torturados pelos representantes do poder com o objectivo de renegarem a fé cristã. Refira-se que o papel de Julião, quando adulto, é desempenhado por Yoshi Oida, actor japonês da companhia de Peter Brook que também faz parte do elenco de “Silêncio” de Scorsese.
Versus o filme de Scorsese
Mas, enquanto o filme de Scorsese se centra na personagem do padre Ferreira que sucumbe à tortura, renuncia à sua fé e se converte ao budismo vivendo o resto da vida com o nome de Sawano Shuan, “Os Olhos da Ásia” mostra, como se fossem as duas faces da mesma moeda, Cristóvão Ferreira e Julião Nakaura. O último resiste até ao fim e morre como um mártir. João Mário Grilo trata-os em pé de igualdade e sem juízos de valor sobre a atitude de cada um deles.
Aliás, outro dos quatro jovens que foram a Roma, Miguel Chijiwa, assume em “Os Olhos da Ásia” um papel fulcral durante a prisão e tortura de Ferreira e Julião, deixando perceber que debaixo de uma capa de abjuração do cristianismo poderá manter secretamente a fé que lhe foi transmitida pelos jesuítas.
O cristianismo no Japão de hoje
E será que foi pela via de um certo fingimento de gente como Miguel Chijiwa, que não toma as posições extremas das personagens principais (a abjuração e a adopção da religião e hábitos japoneses, no caso de Cristóvão Ferreira, ou a resistência até à morte, no de Julião Nakaura), mas que vai actuando um pouco ao sabor das circunstâncias, que o cristianismo se manteve no Japão até hoje?
Este foi um dos pontos mais interessantes do debate a que assistimos no Rivoli sobre um filme em que alternam as imagens de uma história com mais três séculos (todas filmadas em Portugal) com as de um Japão dos nossos dias, estas num registo documental introduzido na trama pela personagem representada por Geraldine Chaplin que faz o papel de uma comissária cultural europeia que se desloca a Nagasaqui para procurar evidências da presença cristã no Japão actual. As alusões ao bombardeamento atómico da cidade são também inevitáveis.
Uma referência final para a frase de Walt Whitman que João Mário Grilo coloca no início do filme e que sintetiza sabiamente a inexorável passagem do tempo, mas também os ciclos da História que, como a ondulação do mar, se vão repetindo e reinventando: “…endlessly rocks the cradle, Uniter of Here and Hereafter” (Incessantemente balança o berço que une o Hoje e o Amanhã).
Aos cinéfilos lisboetas
Atenção cinéfilos lisboetas: esta é uma oportunidade rara de ver um filme particularmente interessante, hoje praticamente invisível. Teve na época da estreia edição em cassette VHS mas nunca chegou a ser editado em DVD. E é pena, porque o cinema não se esgota em Scorsese… Não vejam nesta frase qualquer menosprezo em relação a um cineasta norte-americano, reconhecidamente cinéfilo, por quem temos grande admiração.