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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

“Os Passos em Volta”

Carlos Fino

50 dias depois das eleições legislativas de Outubro e quase duas semanas após a queda do governo no Parlamento, Portugal continua sem um executivo em plenitude de funções.

Em vez de encarregar de imediato o líder do segundo partido mais votado de formar governo, uma vez que o primeiro falhou, o Presidente da República optou por ouvir previamente um conjunto de personalidades de diferentes sectores sociais, num critério de índole corporativa – patrões, banqueiros, sindicatos, associações diversas e, por fim, novamente os partidos políticos.

Oficialmente justificado como necessária auscultação social e tempo de espera para reflexão ponderada antes de uma decisão final, o arrastado processo acabou por gerar no país um sentimento de impasse, ao mesmo tempo que o clima político se foi tornando cada dia mais tenso.

No confronto de posições dos últimos dias já vimos e ouvimos de tudo – desde uma ameaça de agitação social por parte do Partido Comunista caso o Presidente não decida a contento, a acusações de fraude por parte da direita contra a esquerda e vice-versa, aprofundando perigosamente a clivagem política.

CAVACO E COSTA - DE COSTAS VOLTADAS

Tudo isso para se chegar, afinal de contas, ao mesmo incontornável ponto de partida – a existência no Parlamento de uma maioria dos partidos de esquerda – pela primeira vez unidos nos últimos 40 anos – que impõe, a serem observadas as normas e o espírito da Constituição, que lhes seja facultada a formação do governo.

Mas a Cavaco Silva não agrada de modo nenhum essa solução, como deixou bem claro na sua comunicação ao país do mês passado, onde afirmou, exaltado:

“Em 40 anos de democracia, nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas anti-europeístas, isto é, de forças políticas que, nos programas eleitorais com que se apresentaram ao povo português, defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da União Bancária e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, assim como o desmantelamento da União Económica e Monetária e a saída de Portugal do Euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador.

Este é o pior momento para alterar radicalmente os fundamentos do nosso regime democrático, de uma forma que não corresponde sequer à vontade democrática expressa pelos Portugueses nas eleições do passado dia 4 de outubro.”

Este raciocínio falha, no entanto, por duas ordens de razões – primeiro, porque o Partido Socialista preferiu, desta vez, não mais sustentar com o seu voto ou a sua abstenção a continuação do governo de direita; e porque a esquerda à esquerda do PS se compromete a não levantar na próxima legislatura essas questões de fundo mais fracturantes, limitando-se a apoiar um programa mínimo de medidas sociais, passíveis de serem subscritas por qualquer governo mais ou menos centrista em qualquer parte do mundo.

O próprio PS, aliás, com o seu historial pró-europeu e até atlanticista (leia-se pró-NATO), é garante suficiente de que não há perigo de qualquer radicalização.

Neste contexto, espanta que o embaixador americano em Lisboa tenha considerado necessário intervir – numa manifesta ingerência nos assuntos internos portugueses – dizendo-se “preocupado” com as alianças do PS à esquerda.

“Temos o PS e António Costa, que reafirmou em larga medida o compromisso do seu partido com a NATO, com a União Europeia e organizações semelhantes. Mas, por outro lado, temos os seus parceiros de aliança, PCP e BE, que têm sido ferozmente anti-NATO. Isso levanta a questão sobre se o compromisso de Portugal, como membro fundador, é firme como sempre foi”, destacou Robert Sherman.

Há quem diga que uma tal declaração – longe de expressar uma genuína preocupação de Washington com a situação portuguesa – teria sido estimulada pelos sectores mais à direita do próprio PS, que embora hoje minoritários no partido não deixam de ser muito influentes na cena política, uma vez que integram personalidades destacadas que já passaram por cargos no governo e mantêm uma rede de contactos no plano externo.

Seja como for, a declaração do embaixador americano pesa e pesa muito e Cavaco Silva – se bem o conheço por aquilo que vi enquanto jornalista – não deixará de a ter muito em conta na avaliação que terá de fazer antes de tomar uma decisão.

Em qualquer caso, uma coisa é certa – o Presidente não tem como furtar-se à nova realidade política que é a existência de uma maioria de esquerda no Parlamento e por isso, inexoravelmente tudo volta ao ponto de partida, que já existia antes do longo processo de auscultações que resolveu empreender como quem busca algures uma saída de uma situação que preferiria não ter de enfrentar.

Lembra o andar em círculo descrito por Herberto Hélder nos contos de “Os Passos em Volta”, obra-prima da literatura portuguesa do século XX.

No confronto entre o eu e a realidade, o autor chega a sugerir que o desequilíbrio poderia ser, afinal, a opção mais adequada que o homem teria a fim de ficar em harmonia com o mundo:

“mas, escute cá, a loucura, a maravilhosa e tenebrosa loucura… Enfim, não seria isso um pouco mais nobre, digamos, mais conforme com o grande segredo da nossa humanidade?”

A indecisão do Presidente, a prolongar-se, poderia, no limite, levar-nos a todos à loucura. Mas, não sendo essa uma opção, o PR faria melhor decidir logo aceitar a realidade como ela se apresenta e encarregar o líder do PS de formar governo.

O apelo ao bom senso veio esta semana da própria direita, pela pena de José Ribeiro e Castro, ex-dirigente do CDS, que lembrou – e bem – que em democracia não se pode ter um governo que vá contra a maioria existente no Parlamento:

“pode impor-se a obrigação “constitucional” de um Governo contra uma maioria legislativa? É aceitável, ou sequer desejável, defender a formação de um governo ou a sua manutenção contra uma maioria legislativa claramente oposta e até hostil? (…) Um governo assim poderia lá estar? A fazer o quê? Expliquem-me por favor: a fazer o quê?”

A maioria de esquerda é instável e pouco consistente, tendo em conta as diferenças que dividem os partidos que a integram e já se manifestaram em diferentes episódios? Talvez. Mas isso não pode ser impeditivo de que formem governo. Facultar-lhes o acesso ao executivo será aliás a maior prova a que poderão ser submetidos, cabendo depois ao povo julgá-los num próximo acto eleitoral.

Afinal, a democracia – como dizia Churchill e todos bem sabemos já por experiência própria – “é o pior dos regimes, com excepção de todos os outros.”

 

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