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Domingo, Dezembro 22, 2024

Os portugueses no Havai… e um detective chinês

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A presença de portugueses emigrados nas ilhas do Pacífico e em diferentes partes dos Estados Unidos da América está referenciada desde o século XIX e princípios do Século XX em diversas obras literárias e começa a ser objecto de trabalhos académicos. Entre estes Land, As Far the Eye Can See – Portuguese in the Old East publicado em 2001 pelos académicos californianos Donald Warrin e Geoffrey L Gomes com Nota Introdutória de Eduardo Mayone Dias e prefácio de Joel Neto, com edição portuguesa pela Bertrand em 2008(i).

Esta emigração realiza-se, como os autores elucidam, a partir dos arquipélagos portugueses dos Açores e de Cabo Verde(ii), e também do arquipélago da Madeira. Como não poderia deixar de ser, o livro regista que em 1975 Cabo Verde acedeu à independência e que em 1976 as “Ilhas Adjacentes” dos Açores e da Madeira se tornaram regiões autónomas da República Portuguesa.

A necessidade de individualizar o Oeste, está, na abordagem dos autores, na percepção de que o “espírito da fronteira” potenciou que os portugueses, mais do que no Leste dos Estados Unidos, desenvolvessem aí estratégias que, apoiando-se no seu espírito de poupança, os levaram a tentar prosperar comprando terras, constituindo rebanhos de ovelhas ou criando pequenos negócios(iii).

Na sua Nota Introdutória Eduardo Mayone Dias salvaguarda:

(iv)…o livro alude ao caso dos portugueses no Havai, sociologicamente a meio caminho entre os instalados no Leste e no Oeste do continente americano. Diga-se de passagem que os primeiros imigrantes a chegar a estas ilhas encontraram um ambiente rural semelhante ao que encontraram os primeiros a chegar à Califórnia. Contudo, e como os autores referem, foram de imediato absorvidos por uma rígida hierarquia laboral. Foi só quando abandonaram as plantações de cana-de-açúcar e se mudaram para a cidade que conseguiram alcançar um certo grau de autonomia económica.

Os próprios autores são mesmo muito directos:

No Havai, estigmatizados pelas suas origens como humildes trabalhadores das plantações e pela classificação étnica como não caucasianos, os portugueses lutaram durante as décadas de 1920 e 1930 para se dissociar do “estereótipo de ‘Portugee’” indo viver para Hilo e para Honolulu(v) e ocultando as suas origens étnicas.  

No ano que há pouco findou tive oportunidade de adquirir na Feira do Livro de Lisboa um livro cuja capa tinha colado um dístico dizendo Os Portugueses no Havai, e cujo título era Mandem saudades – uma longínqua história da emigração, sendo da autoria de Mário Augusto, jornalista e fazendo parte da colecção Retratos da Fundação, da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Tinha-lhe dado uma breve vista de olhos quando recebo convite para assistir, no dia 11 de Outubro de 2022 a uma Conferência em formato híbrido, promovida pela Sociedade de Geografia de Lisboa através da sua Secção de Etnografia sobre o tema:

“Difíceis travessias: reconstituindo a experiência de madeirenses e açorianos embarcados para as plantações da Guiana britânica e Hawaii (século XIX) “

sendo as conferencistas Cristiana Bastos e Ana Isabel Sprangler, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Obviamente o impacto de uma conferência híbrida será sempre reduzido, mesmo a possibilidade de seguir por zoom não amplia o número de participantes, mas registe-se que à partida onde existiam pontos de contacto a informação foi correctamente veiculada. O livro cobre as travessias do século XIX mas identifica as determinantes da migração, incluindo no caso da Madeira a filoxera, e debruça-se igualmente sobre as travessias do século XX até 1913 (a I Guerra Mundial começaria no ano seguinte) e além dos açorianos e madeirenses regista também a emigração para o Havai de transmontanos e de alentejanos e de alguns beirões; a conferência aprofunda mais a expressão da crise na Madeira e aborda o movimento para a Guiana Britânica. Foi, pertinentemente, chamada a atenção na conferência para que a deslocação de população para o Havai e Guiana foi superior à fixação de novos colonos em Angola e Moçambique.

As condições de travessia e de desembarque foram tratadas em termos muito semelhantes. O livro enquadra bem as condições políticas locais da emigração – uma monarquia havaiana formada no fim do século XVIIi unifica as ilhas durante quase 100 anos, um dos reis visitará a Europa sendo recebido em Portugal por Dom Luís, celebra-se um acordo, funcionando um emigrante açoriano já instalado no Havai – Jason Perry(vi) – um misto de engajador e de cônsul honorário, mais tarde é nomeado um cônsul profissional com atenção a que sejam cumpridos os contratos.

No entanto a agricultura do arquipélago é controlado por 4 grandes companhias americanas, em 1894 é proclamada a República, em 1898 é pedida e concedida a anexação aos Estados Unidos(vii). A origem dos fluxos migratórios foi conhecendo alterações, tendo a certa altura sido reduzido o peso da imigração chinesa e reforçado o da japonesa(viii). O cultivo da cana de açúcar foi entretanto abandonado. Os portugueses, terminados os contratos, vão-se fixando nas cidades. Os açorianos encomendam-se ao Espírito Santo e criam em Honolulu o bairro de Punchbowl na encosta de um vulcão extinto, os madeirenses a Nossa Senhora do Monte e criam o bairro de Kalihi Uva. Os imigrantes que vieram de outros locais de Portugal tendem a transferir a sua residência para a costa californiana.

Mário Augusto, que tem ido várias vezes ao Havai, feito entrevistas a pessoas já muito idosas que até esqueceram ou quase o português, procurou registos de jornais portugueses que deixaram de se publicar, anotou sagazmente que os portugueses procuraram muitas vezes casar-se com pessoas de outras origens, está consciente de que é difícil quantificar o peso dos luso-descendentes. Procurou no seu livro inventariar publicações académicas e assinalou que para algumas descrições das viagens se apoiou no trabalho de Cristiana Bastos, que já indicámos atrás como oradora no evento da SGL(ix).

Cristiana Bastos e Ana Isabel Sprangler defenderam naquela ocasião que se poderiam tomar as próprias obras literárias como fonte para estas pesquisas. Os autores que escreveram escrito sobre os portugueses em contexto dos seus livros incluem Jack London, Robert Louis Stevenson, Herman Melville. Permitam-me que lhes acrescente Earl Derr Biggers (1884-1933) criador do detective chinês Charlie Chan(x), que encontramos numa série de seis romances policiais (iniciados em 1925 com The House Without a Key  – A Casa sem Chaves) e que inspirou posteriormente muitos outros trabalhos e até bandas desenhadas.

O protagonista principal de A Casa sem Chaves não é contudo o sargento Charlie Chan, que nos é apresentado como um profissional discreto que se sabe fazer respeitar, mas John Quincy Winterslip um jovem puritano de Boston, já integrado nos negócios e comprometido com uma noiva (Agatha Parker), que a família envia ao Havai para trazer de volta uma sua tia, Minerva Winterslip que está de visita a dois outros primos, Dan e Amos, há muito tempo radicados no Havai e entretanto desavindos entre si. A história começa em São Francisco, onde John Quincy conhece uma rapariga (Carlota Maria Egan, fiha de um hoteleiro britânico e de uma portuguesa, esta já falecida) que está de partida para Honolulu. John Quincy segue o mesmo destino num barco em que segue também a filha de Dan Winterslip (Barbara) por quem sente também alguma inclinação, a qual encontra o pai já assassinado. Sucedem-se várias aventuras que obrigam o excessivamente formal John Quincy a descontrair-se e a valorizar a gente das mais variadas características com que se vai relacionando.

Earl Derr Biggers

Earl Derr Biggers era natural do Ohio, estudou em Harvard, e radicou-se na California. John Quincy, descoberto o criminoso em cooperação com Charlie Chan, resolve fixar-se em São Francisco (o Havai é insensivelmente desmoralizante). Adivinhem na companhia de quem.

Num outro livro Charlie Chan, já promovido de sargento a inspector, tem um auxiliar perfeitamente desastrado. Naturalmente, um japonês.

Quando está longe em serviço o Inspector Chan vai pensando na sua velha mãe, que trouxe da China, na sua mulher, e nos seus filhos, em número crescente …na sua casa de Punchbowl Hill.

Earl Derr Biggers devia prezar muito os chineses e os portugueses.

 

Notas

(i) Os Portugueses no Faroeste – Terra a perder de vista.

(ii) No início da década de 1960 um antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros defendeu publicamente que às ilhas de Cabo Verde fosse constitucionalmente atribuído o estatuto de Ilhas Adjacentes.

(iii) Salvo um ou outro caso destacados pelos autores.

(iv) Na ilha de Hawaii, a maior do arquipélago.

(v) Na ilha de Oahu, maior cidade do arquipélago e capital do Estado.

(vi) Aliás Jacinto Pereira.

(vii) No entanto só em 1959 o Hawaii atinge a qualidade de Estado – o 50 º

(viii) Raymond Cartier nota em La Seconde Guerre Mondiale que na altura do ataque a Pearl Harbour viviam no arquipélago 100 mil japoneses.

(ix) O único reparo que tenha a fazer ao autor é, na página 30, dar Eça de Queirós como embaixador de Portugal em Paris, quando ele terá sido apenas cônsul.

(x) Inspirado no detective Chang Apana, de origem chinesa e radicado no Havai.

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