O Fernando, tiritando de frio, não me presta atenção, o olhar fito num qualquer sonho distante, quente, farto e doce. Reparo que veio calçado: botas de borracha enormes, rotas — mas calçado. Por causa da visita do inspector na semana passada.
O vento sopra cortante, tremem os corpos, batem os dentes com frio. Resguardamo-nos no pequeno vestiário da escola, gelado, desabrigado.
— Lê a lição, pede-me o Fernando, que, mais uma vez, não terá feito os trabalhos de casa. E eu, que gosto de ler, começo: “Na madrugada do dia 1 de Dezembro, quarenta vultos rebuçados… “
Os olhos do Fernando brilham e rebrilham, tantos rebuçados juntos, estômago vazio, cabeça cheia de iguarias, ele que chega à escola com aguada de café de cevada no bucho e talvez umas sopas de côdea em resto da lavadura do caldo da véspera…
Corrijo-o: — Não são rebuçados desses.
Resplandece-lhe a face: — São rebuçados “Noivos”? Tão bons!
Surpreendo-me: — Já comeste desses? Sim, conta, um que lhe deram. Nunca provara nada tão bom na vida! Ah, se eu fosse rico, era só o que comia. Rebuçados “Noivos” de manhã à noite.
Recomeço a leitura. (Gosto de rebuçados, mas prefiro ler, sobretudo quando me ouvem…)
— Quarenta vultos rebuçados…
E ele, augado: — Não me fales mais em rebuçados.
Prossigo. O Fernando, tiritando de frio, não me presta atenção, o olhar fito num qualquer sonho distante, quente, farto e doce. Reparo que veio calçado: botas de borracha enormes, rotas — mas calçado. Por causa da visita do inspector na semana passada. Ralhou com a professora: — Há meninos descalços! E para nós: — Não podeis vir descalços para a escola, ouvistes?
Atrapalhada, a professora tenta desculpar-se: — São muito pobres, os pais não podem…
O inspector, ar de santo: —Então ajude-os, com o dinheiro da Caixa Escolar
— Mas, Senhor Inspector, o dinheiro da Caixa nunca chega para as despesas, tinta permanente, papel, giz… É terra de gente pobre…
Que visse o que podia fazer. Descalços, não.
Eis que chega a professora: — Bom dia, minha senhora.
— Bom dia, meninos. Vamos entrar.
Seguimo-la, sempre deslumbrados com a sua beleza: bem jovem, alta, elegante, cabelo negro, a graça de um sinalzinho no queixo. Todos apaixonados por ela desde que cá chegou, em Outubro. Só é pena ser tão má, maltratar-nos tão cruelmente. Precisamente por isso, o Fernando, uma das suas principais vítimas, a alcunhou: Foguete 24; foguete, porque se assustou com o estoiro de um na festa; 24, porque é a sua conta normal de reguadas, uma dúzia em cada mão. Não há régua que lhe resista por muito tempo. Há semanas, partiu uma nas costas de um desses matulões que se arrasta pela escola à espera dos catorze anos, para então a poder abandonar, incapaz de fazer a quarta classe — a professora nem o leva a exame. Pois na manhã seguinte, eis que se levanta e respeitosamente se lhe dirige: — Minha senhora, está aqui esta régua que o meu pai fez e lhe manda. Manda também dizer que é de castanho, não parte às primeiras.
— Vamos lá a experimentá-la. Dá cá a mão.
E segue-se tareia preventiva: — Fica por por desconto das que hás-de apanhar esta manhã!
Começa o interrogatório, pretexto para o primeiro espancamento matinal:
— Que dia é amanhã?
— 1 de Dezembro, respondo prontamente, sempre sabichão.
— Porque é que é feriado?
E eu, mão no ar: — Porque é o dia da Restauração.
— Tu, cala-te. Respondes quando te perguntar. Fernando: o que é que aconteceu?
E ele, sofrendo por antecipação as duas dúzias de reguadas, contorce-se já na carteira, esfrega as mãos enregeladas, por tique nervoso ou para para as aquecer, que pancada em mãos frias dói muito mais:
— Houve a Restauração…
— Isso já sabemos. Pára de dançar e responde.
— Quarenta…, soluça, — Quarenta…
Que prossiga, ordena severa, brandindo a régua na mão direita, com vigor semelhante ao das espadas com que aqueles revolucionários trespassaram Miguel de Vasconcelos, antes ou depois de o defenestrarem, já não me lembro.
O Fernando, cada vez mais atrapalhado, só gagueja: — Quarenta…
— Quarenta quê? Desembucha!
— Quarenta rebuçados, já disse! — chora o Fernando.
E a professora, no gozo: — Quarenta rebuçados?
— Sim, um pote cheio deles, como os que há na loja da Tia Joaquina….
Torce-se, grita, tenta fugir com a mão cheia de frieiras à tortura, acaba por levar as últimas no rabo, nas costas, na cabeça: — Culpa tua, que não paras quieto!
A professora só se moderará anos mais tarde, já na Primavera Marcelista. Um desses calmeirões, louco de dor, exasperado com os espancamentos diários, virou-se a ela: — Sua puta, se me bate mais, fodo-a!
— Ai, tragam-me um copo de água, que vou desmaiar.
Foi o irmão da vítima que lhe trouxe a água, mas não lha deu a beber, atirou-lha à cara.
(Conta-se que um cidadão romano, octogenário, dizia preferir a morte a voltar à infância, tendo de passar novamente pela escola e pelas suas torturas…)
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