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Domingo, Dezembro 22, 2024

Os ricos que paguem a crise (que promoveram!)

José Carlos S. de Almeida
José Carlos S. de Almeida
Professor de Filosofia do ensino secundário. Licenciado em Filosofia e em Direito.

Apareceu em 2009 uma reedição da mesma obra, com um título mais próximo do original mas também muito próxima do título apropriado a um thriller sobre um desastre aéreo, Crash 1929, numa editora que desconheço, a Gestão Plus.

Lamentavelmente, quando estávamos mergulhados em plena crise, esperava que fosse reeditada esta sugestiva obra do grande economista canadiano e que se doutorou na Universidade da Califórnia, onde continuou a leccionar.

Lamento não ter sido reeditada porque esta obra de Galbraith é a todos os títulos notável pelas conclusões que retira e pelas lições que nos dá, apesar de ter sido escrita em 1945. Só que, como salientava Marx, a História repete-se sempre duas vezes: a primeira como drama e a segunda como comédia.

crise
John Kenneth Galbraith

Ora, desde logo Galbraith traça aquilo que designa como o denominador comum de todos os episódios especulativos: a crença cada vez mais generalizada que as pessoas estão predestinadas pela sorte a enriquecer sem trabalhar, devido a algum sistema infalível, ao favor divino, ao acesso a informações confidenciais (hoje diríamos, privilegiadas) ou a uma excepcional perspicácia financeira (p. 17).

Por outro lado, o autor também não tem dúvidas sobre os responsáveis pela crise económica que se prolongou nos anos seguintes. Com efeito, para Galbraith, a bancarrota do mercado de acções e a especulação que a tornou inevitável são os grandes responsáveis pela situação criada (p. 33).

No entanto, havia quem achasse que em Wall Street tudo corria bem, como se um deus ex-machina fosse o bom responsável pelas oscilações do mercado, o ponto de vista que era muito agradável para os círculos financeiros (pp. 34-35). Só que para Galbraith os governos não estão isentos de culpa.

Aliás, não podemos deixar de ficar estupefactos ou soltar uma gargalhada ao depararmos com o tom de satisfação com que o presidente Coolidge, em 4 de Dezembro de 1928, se dirige ao Congresso no seu discurso sobre o estado da união. Como recorda Galbraith, referindo-se a esse discurso, “mesmo o mais melancólico dos congressistas deve-se ter sentido animado ao ouvir as suas palavras” (p. 39).

De facto, o presidente americano refere que nunca houve perspectivas tão agradáveis como as actuais, existindo tranquilidade e satisfação no campo interno, bem como paz e bem-estar no campo externo! Contudo, Galbraith reconhece que a pobreza e as desigualdades sociais estavam a aumentar. [1]

Porém, o que torna a análise de Galbraith interessante é a sua descrição da fuga das pessoas para o puro reino da fantasia quando surgem os primeiros sinais da crise. Galbraith assinala que logo no início de 1929 ocorre “uma fuga maciça para um mundo ilusório, que é uma característica muito importante da verdadeira orgia especulativa” (p. 52). É assim que “as pessoas não pretendiam ser persuadidas da realidade das coisas, mas sim encontrar um pretexto para mergulhar no fundo da fantasia” (p. 52).

A acompanhar o contexto anterior ao crash de 1929, também assistimos à especulação imobiliária, o que ocorreu na altura na Florida, com uma corrida inusitada à compra de lotes de terreno.

Galbraith descreve os contornos desse processo, nomeadamente, a intervenção dos especuladores que negociavam e revendiam o sinal que era dado para aquisição imobiliária! (pp. 60-61).

JohnKennethGalbraith-ACriseEconomicaDe1929Claro que Wall Street mascarava estas transacções especulativas e, por isso, Galbraith descreve Wall Street como uma mulher adorável e perfeita que tem de usar meias pretas de algodão e espessa roupa interior de lã, ostentando os seus conhecimentos de culinária “porque, infelizmente, a sua suprema realização é como prostituta” (p. 63).

Mas, neste processo, também a Reserva Federal não sai isenta de comprometimento, pois estava menos interessada em atacar a especulação do que a furtar-se a assumir responsabilidades pela mesma (p. 81).

Também aqui se pretendia que o seu silêncio tivesse um efeito tranquilizador (p. 85).

Por fim, Galbraith dedica-se à análise do comportamento dos chamados génios financeiros num capítulo ironicamente intitulado “«Louvados sejam Goldman, Sachs e Companhia!» É aqui que surgem os trusts de investimento que irão gerar entusiasmo junto do público que pretende adquirir os seus títulos.

Na altura espalhava-se a ideia de que todos deviam ser ricos, título, precisamente, dum artigo escrito por um dos aludidos génios da altura, John J. Reskob, que propôs a criação dum trust de investimento para que todos aumentassem o seu capital como faziam os ricos, mobilizando as suas pequenas poupanças.

Estávamos, já, nos primórdios do capitalismo popular de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.

O plano de Raskob foi então considerado uma utopia prática, a maior visão do maior cérebro de Wall Street!… Por outro lado, para além da genialidade e perícia operacional no mundo da finança, aos trusts de investimento já se atribuía o «efeito de alavanca» (pp. 108-109), uma espécie de efeito de dominó em que os trusts se potenciavam uns aos outros aumentando (alavancando) magicamente os ganhos, através também da sua disposição piramidal. Contudo, Galbraith, desmancha-prazeres, recorda que já era tempo de dizermos que o «efeito alavanca» funcionava nos dois sentidos!

O milagre da multiplicação dos pães também podia redundar numa praga de gafanhotos!… No entanto, pregava-se o optimismo e, recorda Galbraith, “os profetas da ruína eram acerbamente criticados” (p. 123). Para a criação artificial desse clima radioso, também contribuíram os jornalistas, que Galbraith denuncia por exigirem dinheiro a troco de notícias favoráveis ao mercado (p. 130), nomeando-os em concreto.

Ainda em Outubro de 1929, The Wall Street Journal desenvolvia o ponto de vista que os mercados gozavam de boa saúde. Mesmo quando a Bolsa começa a registar as primeiras perdas assinaláveis, tenta-se fazer crer que se trata de uma situação insignificante e temporária.

Um dos gurus da Bolsa e que Galbraith alcunha de “profeta oficial de Wall Street, o Professor Fisher”, afirma que aquele declínio representa apenas «a sacudidela de uma excrescência« (p. 160).

Já a concluir o livro, Galbraith conta-nos uma história exemplar e que face à qual sempre poderemos dizer, mas onde é que eu já vi isto! Então, é assim.

O Chase, o JP Morgan Chase Bank, foi um dos bancos que sofreu as consequências do crash de 1929. Tinha à sua frente Albert H. Wiggin, presidente da direcção do Banco e também da sua junta de governadores.

Segundo Galbraith, Wiggin era também especulador e jogador. Esteve comprometido com projectos duvidosos e que culminaram com a derrocada de 1929.

Contudo, nesse mesmo ano, Wiggin recebeu a módica quantia de 275 000 dólares de compensação. Recebia também de vários sítios e de empresas privadas que criara, algumas no Canadá, “por razões muito pouco sentimentais de natureza fiscal” (p. 226) e que realizavam espantosas operações bolsistas.

Mas, as mais assombrosas operações do sr. Wiggin foram realizadas com as acções do Chase, financiadas pelo próprio banco, com os lucros a reverterem integralmente para o sr. Wiggin.

Finalmente, a cereja… A Comissão Executiva do Chase votou por unanimidade que lhe fosse concedido um salário vitalício de 100 mil dólares anuais.

Soube-se mais tarde que este gesto de inspirada generosidade fora resultado da iniciativa do próprio Wiggin!

Exemplar, não acham? Crise? Mas qual crise!…

Afinal em 1929, como em 2009, são sempre os mesmos a pagar e os mesmos a lucrar. E quem é que disse que a História não se repetia? O problema é que a gente não aprende e esquece rapidamente.

John Kenneth Galbraith, A Crise Económica de 1929 – anatomia de uma catástrofe financeira, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1974, 286 pp.

[1] Cf. Niall Ferguson, A Guerra do Mundo, Lisboa, Livraria Civilização Editora, 2006, p. 163-166.

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