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Sábado, Dezembro 21, 2024

Os três «I» do suicídio entre os médicos

Santiago Castilho, Angola
Santiago Castilho, Angola
Médico Ortopedista. Trabalha e vive em Luanda. Angola

O Dr. Kutner da série “Dr. House” suicida-se com um disparo em seu apartamento no episódio ‘Simple Explanation’, da 5ª temporada. Kutner não deixou qualquer razão para o acto, pelo que o House suspeitou que fosse crime.

Mas foi suicídio, definitivamente o Dr Kutner, foi mais um médico suicida.

O ator Kal Penn, que interpretou Kutner, tinha aceitado um emprego na Casa Branca. Seria “um elo de ligação entre a administração Obama, presidente na época, e os grupos de artes e entretenimento” por isso foi necessário “matar” a sua personagem na serie.

Fora das series de televisão também os médicos se suicidam. O médico por vezes representa alguém diferente a ele. Assim um bom dia decide acabar com o personagem e com sua vida. Na Tv morre a personagem e sobrevive o actor, na vida real ambos morrem.

Os pacientes ficam chocados ao saber que aquele médico “sempre tão alegre e simpático” se suicidou. Estima-se que só nos Estados Unidos de América se suicidam uma média de 400 médicos por ano. Isto é mais de um por dia. Somadas as mortes das últimas décadas é o equivalente a uma escola de medicina e pouco mais.

Mas o que leva a um medico ao suicídio? Como alguém, que prima por salvar vidas, possa renunciar à dele? Porque o suicídio entre médicos é 2-3 vezes superior ao da população? Porque são os profissionais mais suicidas?

A morte de um médico tem um contexto muito particular. É uma morte Imprevisível, é Incompreensível e é uma morte Injusta. São os três “I” à volta do suicídio entre médicos, a razão principal deste texto.

Imprevisível

O Dr. Benjamin Shaffer, um ortopedista especialista em Medicina Desportiva suicidou-se. Foram descobertos alguns indícios de que ele tinha problemas conjugais, nas finanças e na saúde. O Dr. Ben Shaffer estava a recuperar-se de uma recente cirurgia nas costas. Também tinha sérios distúrbios psíquicos. Oito dias antes de morrer, começou a tomar Prozac e Seroquel. Esta medicação não conseguiu travar a insónia, nem a paranóia.

A imprevisibilidade do caso está em ele ser conhecido como “Dr. Smiles”. Assim mesmo, o Dr. Shaffer era apelidado de Dr. Sorriso. Mas por trás de aquele sorriso escondia um homem em crise. A imagem que projectava não era a de um suicida, mas matou-se. Tal como o fizeram outros 33 ortopedistas nos últimos anos. De forma inesperada, sem avisos.

Na noite anterior à sua morte, Ben disse a seus colegas que precisava descansar o resto da semana porque não estava dormindo bem. Podia ter sido esse um sinal de alarme? Talvez, mas não tinham como prever, que o Dr. Sorriso, seria capaz de quitar-se à vida.

Ninguém se preocupa com o estado emocional dos médicos. Nem os familiares, nem os pacientes e muito menos os gestores. Os pacientes partem do princípio de que se o médico está em funções é porque se encontra física e psicologicamente apto. Os gestores estão mais preocupados com a produtividade, do que com a saúde dos médicos. A família, que em todo caso devia ser suporte, nem sempre o é. Aliás, com frequência são a causa principal da derrapagem emocional.

Incompreensível

O Dr. Dean Lorich foi um ortopedista norte-americano que ganhou fama, após ter operado com sucesso Bono, o vocalista dos U2. Resulta que Bono fracturou o antebraço numa queda. Ele operou-o e Bono recuperou a função da extremidade totalmente.

O Dr. Dean operou também Michael Cox, um jogador de futebol americano. Em Novembro de 2014, Michael Cox fracturou o tornozelo durante um jogo. Infelizmente os resultados da cirurgia não foram satisfatórios. Parece que o Dr. Lorich operou o perónio mas não tratou outra lesão concomitante. O atleta entrou com uma acção judicial contra ele e contra o Hospital Presbiteriano de Nova York onde trabalhava.

Poucos dias depois de ter perdido os seus privilégios no hospital, o Dr. Dean Lorich foi encontrado morto. As autoridades acreditam que foi um suicídio. Ele tinha sido suspenso por causa do processo legal em curso, mas o advogado de Cox considerou que não havia qualquer relação com o processo do seu cliente.

É difícil perceber o que pode levar um médico ao suicídio. Médicos são treinados para lidar com doenças, para salvar pacientes ou pelo menos aliviar a sua dor. Não faz parte do curriculum do curso de medicina, aprender a lidar com a frustração dos “utentes”, nem com a pressão das Seguradoras. Muito menos com a voracidade dos advogados. Provavelmente, se assim fosse, estariam melhor preparados para enfrentar estes desafios.

Por outro lado, reconhecer um distúrbio psíquico não e fácil para o médico. Além do estigma profissional, está o perigo de perder o emprego. Poucos aceitariam ser tratados por um médico que estejam a fazer tratamentos devido a problemas psiquiátricos.

Injusta

Em 8 de Fevereiro de 2017, às 2:00 da manhã, o Dr. Steve Ortiz visitou os seus pacientes e deixou indicações como fazia diariamente. Redigiu uma nota de agradecimento para a sua equipe cirúrgica. E logo, às três da madrugada, foi para o estacionamento do hospital, sentou-se na sua carrinha e deu um tiro no coração.

Qualquer morte de um médico é injusta, desmerecida. Mais no caso do Dr. Steve Ortiz. Ele era um ortopedista especializado em tratar distúrbios na ráquis (coluna vertebral). A rua que conduz ao estacionamento do hospital onde trabalhava, tinha numerosos buracos. Buracos que o hospital não conseguia tapar. Durante vários dias, o Dr. Ortiz apareceu cedo no hospital com uma pá e cimento. Ele tapou todos os buracos do parque de estacionamento. Fez isso para evitar que os solavancos provocados pelos buracos, afectassem aos pacientes por ele operados.

O Dr Ortiz estava também a lutar contra algo mais complicado que os buracos do estacionamento. Todo indica que estava a ser pressionado para fazer cirurgias desnecessárias. Ele preferia não operar os casos onde o tratamento conservador era mais aconselhável. Mas os hospitais ganham mais dinheiro com as cirurgias. O Dr. Ortiz estava a ser penalizado por isso. Perdeu 30% de sua renda porque encaminhavam menos pacientes para ele. Injusto, não é?

Pior ainda, cada vez são mais os cirurgiões que enfrentam em solitário este tipo de pressão. Os fabricantes querem vender implantes. Só compra implantes quem os coloca. Os hospitais querem ganhar dinheiro, de facto lucram mais quando se coloca um implante. Os pacientes, entretanto, acreditam em qualquer vídeo bonito que mostra cirurgias avançadas no Youtube. As complicações nunca se mostram em tais vídeos. Desta forma, os pacientes são induzidos a pressionar o médico para operar, mesmo quando desnecessário.

Causas e azares

Se os gestores levassem a sério a espiritualidade do médico, como ser humano que não deixa de ser, os suicídios seriam menos frequentes. Deveriam ouvir mais as reclamações, atender mais as carências deles, principalmente em tudo o relacionado com o melhor atendimento aos pacientes.

As estatísticas confirmam que aqueles mais expostos a situações stressantes, os que mais reclamam, os que mais frequentemente lidam com a perda de pacientes são os que mais se suicidam. Nesta senda, são os anestesistas os que lideram.

A seguir aos anestesistas estão os cirurgiões como os mais suicidas. Depois vem os médicos das urgências e depois os obstetras/ginecólogos. É significativo que nem os médicos que trabalham nos cuidados intensivos, nem os patologistas estão no grupo dos mais suicidas. Talvez porque a cobrança é menor nos seus serviços. O paciente que entra na UTI já está em perigo de morte e o que chega até o patologista raramente tem alguma reclamação. Nestas especialidades parece que a frustração entre os médicos é menor.

A vergonha e o estigma. A depressão, o perfeccionismo, o isolamento estão entre as causas mais frequentes do suicídio nos médicos. As horas de voo de um piloto são limitadas por lei, as do médico não. Como entender que alguém esteja em condições de entrar num bloco operatório depois de 24 horas sem dormir?

Repare que o trabalho dos anestesistas é dosear drogas, quase todas venenosas, para suprimir a sensibilidade do paciente, sem provocar a morte. Isso exige uma atenção permanente durante toda a cirurgia. Eventos adversos sempre podem acontecer, independentemente dos cuidados, das medidas preventivas. Não tem como sempre saber que tipo de alergia pode ter o paciente. É difícil detectar anomalias congénitas assintomáticas, que entretanto podem ser mortíferas em determinadas circunstancias. É com isso que lidam diariamente os anestesistas. Sem reconhecimento quando tudo sai bem, responsabilizados se algo corre mal. Então não surpreende que liderem a lista dos suicidas.

Não existe uma fórmula mágica para travar o suicídio entre os médicos. Talvez com o avanço tecnológico, com a inteligência artificial, a pressão sobre o médico seja menor. Todavia, algo pode ser feito até lá. Um primeiro passo seria reconhecer a gravidade da situação. Acabar com o tabu, assumir que os médicos se suicidam frequentemente.

Seria salutar criar um ambiente de trabalho menos denso, que facilite e estimule solicitar ajuda em situações de stress psicológico. Mudar o paradigma de estigmatizar quem está psiquicamente afectado, salvaguardar a reputação, a privacidade. Brindar apoio, espiritual e financeiro sempre que for necessário e muito importante, dosear a carga de trabalho.

Tendo em conta que o suicídio não só afecta aos médicos formados, como também os estudantes de medicina, a mudança deve começar desde ai. O estudante de medicina deve ser treinado para lidar com os sentimentos de culpa, para lidar com a morte, com a frustração dos pacientes e dos familiares. Devem saber, desde o início da carreira, que a incapacidade em superar tudo isso pode ser a sua sentença de morte.


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