(1925-1998)
Cidadão de uma enorme coragem, o Padre Felicidade (como era conhecido também nos meios antifascistas não católicos), foi uma das figuras centrais da oposição dos católicos à ditadura, sobretudo a partir de meados da década de 60. Nas suas homilias abordava temas incómodos ao regime do Estado Novo e às hierarquias eclesiásticas, tais como a guerra colonial, a perseguição política e problemas sociais. Envolveu-se militantemente nos combates contra a Ditadura e na renovação da Igreja Católica, o que determinou a sua prisão e julgamento. Foi afastado das funções de pároco pelo então cardeal patriarca de Lisboa, Cardeal Cerejeira e, mais tarde, tomou conhecimento da sua excomunhão. Era militante do PCP.
Biografia
José da Felicidade Alves nasceu em 11 de Março de 1925 em Vale da Quinta, freguesia de Salir de Matos, Caldas da Rainha, sendo filho de Joaquim Alves e Maria Felicidade.
Após a instrução primária entrou para o seminário, com 11 anos. Em 1948 foi ordenado sacerdote. Destacando-se desde logo pela sua inteligência, foi colocado como professor no Seminário de Almada, e depois no Seminário dos Olivais.
Em 1956 foi nomeado pároco de Santa Maria de Belém, em Lisboa, onde se evidenciou pelo conteúdo das suas homilias. Foi no trabalho da paróquia que se foi dando conta de que o país real era muito diferente do que pensava e, a partir de 1967, as suas intervenções começaram a causar incómodo ao regime e à Igreja Católica[1].
Solidário com o grupo de católicos mais progressistas, o percurso de Felicidade Alves ficou definitivamente marcado após a comunicação que proferiu ao Conselho Paroquial de Belém, em 19 de Abril de 1968, na presença de muitas dezenas de pessoas.
Sob o tema “Perspectivas actuais de transformação nas estruturas da Igreja”, a comunicação de Felicidade Alves punha em causa a forma como a Igreja se apresentava à sociedade, a sua organização, e o modo como eram transmitidos os ensinamentos cristãos e era abordada a própria figura de Deus.
Defendendo uma profunda renovação da Igreja e das suas estruturas, as ideias de Felicidade Alves desagradaram ao cardeal Cerejeira. Em consequência, foi-lhe movido um longo processo que determinou, em Novembro de 1968, o afastamento das suas funções de pároco em Santa Maria de Belém, e, mais tarde, a suspensão das suas funções sacerdotais, terminando, em 1970, com a sua excomunhão[2].
A PIDE/DGS e o “Processo dos GEDOC”
Após o afastamento da paróquia de Belém, Felicidade Alves tornou-se o grande impulsionador, em conjunto com Nuno Teotónio Pereira e o padre Abílio Tavares Cardoso, da publicação dos Cadernos GEDOC, de que saíram onze números, entre 1969 e 1970. Abordando criticamente questões ligadas à hierarquia católica e à guerra colonial, a publicação foi condenada pelo Cardeal Cerejeira e considerada ilegal pela PIDE, sendo instaurado um processo aos seus responsáveis, de que resultará, em 19 de Maio de 1970, a prisão de Felicidade Alves por “actividades contrárias à segurança do Estado”. Acusado de incitar à violência e à luta armada, foi julgado e absolvido[3]. Porém, para lá da questão do colonialismo, para a qual acordara lentamente, havia a situação da Igreja em Portugal, com que se confrontava diariamente[4].
Em 1969 Felicidade Alves publicou a obra Católicos e Política, na qual coligiu inúmeros documentos sobre as relações entre os católicos, a Igreja e o Estado, desde a campanha do general Humberto Delgado, em 1958, até à chegada ao poder de Marcello Caetano (1969).
Em 1970 redigiu as obras “Pessoas Livres” e “É Preciso Nascer de Novo”. Nesta última Felicidade Alves reflecte sobre o casamento, pouco antes de tomar a decisão de se casar civilmente. Em 1 de Agosto daquele ano casou com Maria Elisete Alves, nas Caldas da Rainha.
Actividade ligada à produção literária
Afastado da Igreja, Felicidade Alves irá trabalhar em diversas empresas, como o Anuário Comercial e a editora Livros Horizonte, e prossegue a sua produção literária, publicando estudos de natureza teológica e pastoral, mas também de carácter histórico: publicou um conjunto de estudos (originais) sobre o Mosteiro dos Jerónimos, coordenou uma colecção relativa à obra de Francisco de Holanda e uma outra edição de textos históricos sobre a cidade de Lisboa. A sua actividade bibliográfica foi premiada pela Academia Nacional de Belas Artes, que o tornou seu académico em 1994.
Em 10 de Junho de 1994, foi agraciado com a Comenda da Ordem da Liberdade pelo então Presidente da República Mário Soares. No ano seguinte recebeu o prémio Júlio de Castilho de Olisopografia, atribuído pela Câmara Municipal de Lisboa.
Depois do 25 de Abril de 1974, Felicidade Alves aderiu ao PCP, partido em que se manteve até morrer. Nunca deixou de ser católico, tivera de casar civilmente em 1970, mas pôde realizar o seu casamento pela Igreja em 10 de Junho de 1998, a poucos meses do seu falecimento Foi na sequência de longo processo junto do Vaticano que o acto foi celebrado pelo Cardeal Patriarca de então, D. José Policarpo.
A produção literária de José da Felicidade Alves é ampla e variada. De entre as publicações de natureza teológica e pastoral avultam: Católicos e Política (1969), Pessoas Livres (1970), É Preciso Nascer de Novo (1970) e, sobretudo, Jesus de Nazaré (Livros Horizonte, 1994). Foi também em Livros Horizonte que publicou a extensa bibliografia premiada pela Academia Nacional de Belas Artes, que o fez académico em 1994. Redigiu uma série de estudos originais sobre o Mosteiro dos Jerónimos (três volumes publicados entre 1989 e 1994); coordenou e anotou a colecção «Francisco de Holanda» (seis obras entre 1984 e 1989) e a colecção «Cidade de Lisboa» (cinco obras, entre 1987 e 1990).
Recordado pelos amigos, após a sua morte
José da Felicidade Alves morreu no dia 14 de Dezembro de 1998, com 73 anos. Em 17 de Dezembro de 2008 realizou-se uma sessão, organizada pelo Centro de Reflexão Cristã e pelo Centro Nacional de Cultura, onde amigos e companheiros de luta se reencontraram e o recordaram.
Felicidade Alves e Elisete Alves, no dia do casamento religioso
O acervo, entregue à Fundação Mário Soares por Elisete Alves, viúva de José Felicidade Alves, inclui documentação sobre o seu percurso sacerdotal, em particular enquanto pároco de Santa Maria de Belém (no mosteiro dos Jerónimos), onde proferiu parte significativa das intervenções que iriam determinar o seu afastamento. O fundo abrange ainda a edição dos cadernos GEDOC, a prisão pela PIDE (polícia política da ditadura) e julgamento, assim como material sobre o casamento civil e documentos dirigidos à hierarquia católica em que pede o matrimónio canónico .
[1] «Vivi a guerra colonial primeiro através do drama das pessoas que tinham lá os filhos. Havia milhares de rapazes que iam para a guerra colonial e os dramas não se falava neles. Mas havia famílias que ficavam dilaceradas, crianças que ficavam órfãs. Esses dramas não apareciam muito claramente no cais de Alcântara ou no Cais da Rocha, mas apareciam no confessionário, na sacristia, no recôndito das famílias. Dramas muito fundos. Num 2º momento havia os dramas de uma corrente que contestava a guerra colonial. E iam presos. Alguns dos melhores jovens. Por idealismo, por posição política, por lucidez, recusavam ir para a guerra ou discutiam mesmo a questão. E eram presos, eram torturados. Ou tinham que se exilar. E alguns eram meus paroquianos. E eu não era insensível ao drama dessas famílias. E, num terceiro momento, comecei a ver que a guerra colonial dividia profundamente os católicos.»
[2] O cardeal Cerejeira avançou com uma tentativa de o retirar imediatamente da paróquia, mas acabou por nomear uma Comissão de Inquérito e por só o remover por decreto. Para além da remoção, o cardeal exigiu que, no prazo de dez dias, o Padre Felicidade Alves desse «pública e suficiente reparação» e «garantias seguras de comunhão de espírito e de vontade na acção pastoral», sob pena de suspensão das funções sacerdotais – o que, expirado o prazo e porque ele não cedeu, se concretizou automaticamente.
Houve inúmeras reacções de paroquianos, de 121 padres de Lisboa, de 680 leigos. .
[3] «Eu não incitava à violência. Lutava contra a PIDE, que achava criminosa – continuei a achar durante o julgamento – não aceitava a Censura Prévia, que era uma destruição da alma do país, achava que os povos tinham direito à independência e isso defendi»
[4] «A Igreja estava crucificada no madeiro da cruz. Não era Salazar que crucificava a Igreja. Eram os bispos, foi a Concordata. A Concordata de 1940, que Salazar assinou contra vontade, mas os bispos impuseram, é um acto de crucificação. Os capelães militares, o ensino religioso nas escolas, são chagas.»
Dados biográficos:
- Casa Comum: Arquivos > José da Felicidade Alves
- Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura: Mário Soares e Guilherme d’Oliveira Martins apresentam arquivo pessoal de José da Felicidade Alves
- Caminhos da Memória: José da Felicidade Alves
- Caminhos da Memória: Evocação do padre Felicidade
- Wook: José Felicidade Alves
Fotos do Arquivo de José da Felicidade Alves, em Casa Comum].