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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

Palavras de um Homem e de uma Mulher

José Antunes Ribeiro
José Antunes Ribeiro
Editor e Autor

Agora que a noite principia com o voo da coruja e antes da hibernação dos lagartos, Pepe Mão de Fada invoca o cansaço de Ulisses na ilha de Ogígia e vai contando.

História UM

Uma autoestrada, um carro, um carneiro atravessando distraído o macadame e eis o acidente, o terrível e dramático acidente. Os olhos do carneiro imploram piedade, olhos de carneiro mal morto, o carro com um homem e uma mulher rompe os rails metálicos da berma da autoestrada e é a catástrofe, o vazio, o último segundo do último minuto dos jovens amantes juntos na vida e na morte.

Atrás, um pouco atrás, aparece uma carrinha cheia de gente, talvez um daqueles grupos excursionistas cheios de amor pela paisagem, são tão belos os rebanhos pastando pelos campos fora, é tão serena a pacatez do pastoreio, um pouco mais longe um bonito cão pastor guarda o rebanho de Pepe Mão de Fada e eis senão quando a carrinha se encosta à berma e eu pude assistir à mais espantosa declaração de amor pelos animais de toda a minha já longa vida.

O carneiro foi milagrosamente salvo pelos homens da carrinha e o ensopado foi regado com champanhe.

Não é todos os dias que um carneiro aparece à mão de semear.

História DOIS

A menina Alzira veio propositadamente do subúrbio para vos contar uma história que vem nos livros.
Eis a sua voz um pouco distorcida,

Era uma vez uma formiguinha muito diligente e trabalhadora que juntava, ano após ano, comida no verão para os difíceis invernos dos tempos por vir. Incansável na procura do sustento para a sua tribo, prole e marido incluídos, idas e vindas constantes sempre em busca de alimento cuidadosamente recolhido em invisíveis subterrâneos não fosse o diabo tecê-las…

Este detalhe é imenso. A própria gaivota tem todas as razões para confiar na formiguinha. O mesmo não poderá dizer a cigarra cujos pensamentos se esgotam no seu belo canto. Tinham todos os motivos para viverem juntas, a complementaridade é um facto exaltante, mas não se entendiam de todo.

A cigarra é muito doidivanas e até assegura que os vícios não são crime.

A guerra sim, a guerra é um hediondo crime porque todos morrem inocentes, diz ela. E contudo o seu cantar impede a ruptura, o vazio. Quis fazer as pazes e enviar muitos beijinhos para a formiguinha, mas ela, distraída como sempre com o seu trabalho e até talvez com a sua avareza, nem deu por tamanha simpatia da cigarra, cujo canto ecoava em todo o seu esplendor na floresta de pinheiros, carvalhos e plátanos.

Tanta cigarra à solta, meu Deus, disse a menina Alzira.

A formiguinha nem se deu conta que o cão gania pelo dono, como eu, disse a menina Alzira.

A cigarra continuou a cantar cada vez com mais força. A sua alegria contrastava com o ar sério e atarefado da formiguinha, incansável nas suas longas caminhadas pelos campos em busca do sustento.

De repente, irrompe na paisagem um belo carro descapotável.

Ao volante, alegre e contente, a cigarra doidivanas interpela directamente a formiguinha:

– Vou agora para Paris, tens algum recado para lá?

– Tenho, tenho, tenho sim, diz ao senhor La Fontaine que vá para a puta que o pariu. 

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