Ou: “Por que a esquerda não compreende Reich”“Embora em todos os lugares, grupos de homens, partes das classes subjugadas, lutem por ´pão e liberdade´, a maioria predominante fica de lado e reza, ou luta pela liberdade do lado dos subjugadores. O fato de se querer dar a ela apenas pão, e não todos os prazeres da vida, fortalece a sua humildade. O que a liberdade de fato é, pode ser ou poderá chegar a ser, até agora não foi explicado às massas concretamente (…)”
Wilhelm Reich fez a reflexão acima em 1936, no prefácio para a segunda edição do livro “A Revolução Sexual”* (muito incompreendido, é forçoso dizer, o título inclusive foi alterado) e considero que a ideia ou possibilidade de liberdade continua muito mal explicada às massas atuais.
O embate de lutas entre classes está acirrado, o cenário aponta para novas ondas de fascismo sacudindo frágeis nichos de democracia. Diante do legado sociocultural de Reich**, fica difícil saber se estamos regredindo ou se nunca saímos do lugar; se apenas iludimos a nós mesmos e às massas, esse ser sem nome que, no entanto, sofre todas as consequências dos atos impetrados pela política, outro ser sem nome e sem culpa, embora esmagado pela responsabilidade por nossos sonhos.
Sobre os sonhos, proponho que os depositemos em mãos mais dignas e confiáveis, as nossas, é claro, a minha e a sua! Somos a massa, também somos a política na medida em que lhe damos poder para administrar causas e pleitos coletivos.
Política perigosa da inclusão sexual
Na minha vida pessoal, descobri cedo que a sexualidade ocupa espaço e significado bem maiores do que alardeiam as vãs convenções libertárias ou repressoras que sejam.
Com perfil avesso a pesquisas e olhar indagador exacerbado, fui me equilibrando na corda bamba da insatisfação crescente entre as ideologias progressistas que abracei e o reacionarismo da direita fanática.
Mas a vontade enorme de anarquia sempre me deixou desconfortável nos ambientes, interno e externo, onde autores e suas defesas organizavam-se em estantes, reais ou ficcionais, sem conflito de ideias que pudessem dificultar a ordenação das obras por parte dos organizadores de mundos.
Por isso me identifiquei tanto com Wilhelm Reich, ele é desorganizador por excelência, sabia disso e nunca abdicou da missão. Justificou para os amigos que tentaram em vão dissuadi-lo dos textos provocadores:
“Quem poderia, numa casa em pleno incêndio, escrever tranquilamente tratados estéticos sobre o sentido das cores dos grilos?”
O absurdo de ignorar o que acontece do lado, que Reich repudia aqui, somada à simplificação que os fanáticos adoram, longe de consolidar ideais democráticos afasta-os e fortalece radicalismos, ampliando o campo de exclusão dos povos. Entre todos os excluídos, temos atualmente também os idosos, pouco incômodos no passado porque eram raros, mas cada vez mais numerosos, com perspectivas de — três entre quatro maiores de 60 anos — chegarem ao centenário de vida.
Por isso resolvi escrever um pouquinho, por isso visitei Reich, porque daqui a três anos serei oficialmente “idosa” e quero ter liberdade e prazer em vez de crachá de estacionamento em vaga preferencial. Aliás, não vou estacionar, apenas no crematório ou cemitério quando chegar a hora.
Até lá, sigo acelerada com Reich.
Espero que as estruturas necessárias ao nosso pão e liberdade até a morte sobrevivam a esses tempos obscuros.
Moral revolucionária
Para finalizar, reproduzo trechos do prefácio de Wilhelm Reich para a 2ª Edição (1936) da obra “A Revolução Sexual”:
“(…) os homens de toda parte do mundo na realidade são mentalmente enfermos; reagem mentalmente de forma anormal, acham- se em conflito com os seus próprios desejos e possibilidades reais. Eis alguns sintomas de reações anormais: morrer de fome na abundância; expor-se ao frio, à chuva e à neve, apesar da abundância de carvão, máquinas de construção, milhões de quilômetros de área livre etc.; acreditar que um poder divino de longas barbas brancas rege tudo e que se está à mercê desse poder, para o bem ou para o mal; matar pessoas inocentes com entusiasmo e acreditar ter de conquistar uma terra da qual nunca ouviu falar; andar esfarrapado e ao mesmo tempo sentir-se como representante da “grandeza da nação” a que se pertence; querer a sociedade sem classes e considerá-la a “comunidade do povo” com os caçadores de lucros; esquecer o que prometeu um político antes de se tornar líder da nação; delegar a qualquer indivíduo, mesmo que seja um chefe de Estado, um poder quase absoluto sobre a própria vida e destino; não ser capaz de pensar que também os tais grandes líderes do Estado dormem, comem, têm distúrbios sexuais, satisfazem suas necessidades orgânicas, são dominados por impulsos emocionais inconscientes e incontrolados, exatamente da mesma forma que os simples mortais; considerar o castigo das crianças no interesse da “cultura” coisa evidentemente normal; negar a felicidade da união sexual a jovens na flor da idade. Poder-se-ia continuar ao infinito.
(…)
Finalmente, quero dizer aos meus amigos preocupados, que me advertem deixar a ´política perigosa´ e dedicar-me exclusivamente ao trabalho naturalista, que a economia sexual não se inclina, até onde merece este nome, para a esquerda ou para a direita, mas se move para a frente, isto é: racionalmente dirigida e evolvente, quer queira ela, quer não. Quem poderia, numa casa em pleno incêndio, escrever tranquilamente tratados estéticos sobre o sentido das cores dos grilos?
(Wilhelm Reich, novembro de 1935)
NOTAS:
*A Revolução Sexual (1936) (Sexuality in the Culture Struggle no original alemão) é um livro de Wilhelm Reich. O subtítulo é “Para a Restruturação socialista dos Humanos”. Esta duplicidade de título reflete a estrutura em duas partes do trabalho; a primeira parte analisa a crise da moral social burguesa e as tentativas de reforma sexual que preservavam a estrutura da sociedade capitalista e ideologia da família e do casamento. A segunda parte (ligada ao subtítulo) reconstrói a história da revolução sexual que ocorreu no establishment da União Soviética desde 1922, e que teve resistência de Stalin no final dos anos vinte. A edição de 1945 mudou inexplicavelmente o título para “A Revolução Sexual” (ao passo que o título anterior seria “Sexualidade no Esforço Cultural”). Esta mudança afetou não apenas a perspectiva, mas também a metodologia, resultando numa apresentação deturpada do real trabalho contido no livro. Mais instrutiva foi a mudança no subtítulo: para “Em Direção a uma Estrutura Autorreguladora”. (Fonte: Wikipedia)
**Wilhelm Reich nasceu na Áustria, em 1897, formou-se em Medicina, tornou-se seguidor de Freud até que romperam, filiou-se ao partido comunista e foi expulso, tornou-se alvo de investigação do FBI nos Estados Unidos, país onde foi condenado a dois anos de prisão. Morreu no cárcere em 1957, vítima de ataque cardíaco.
A autora escreve em Português do Brasil