“Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel.” Com estes versos, a canção de Natal mais marcante do País canta com rara sensibilidade o sentido dessa festa que já ultrapassou os sentimentos do cristianismo e afeta corações e mentes até de ateus (graças a Deus!) como este mero repórter.
Com uma ousadia fantástica, o compositor baiano Assis Valente (1911-1958) “matou” Papai Noel nessa sua canção de 1932, não à toa intitulada Boas Festas. Justamente porque nesta época do ano resumimos nas duas palavrinhas o feliz Natal e o próspero Ano Nono, termos muito comuns em cartões de felicitações natalinas.
Além de matar Papai Noel, Valente também transformou a felicidade num “brinquedo de papel”. Porque “já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem. Com certeza já morreu ou então felicidade é brinquedo que não tem”.
Apesar de tanta melancolia, a música é sucesso nas festas de fim de ano. Todos os anos, nesta época, a música é tocada à exaustão e emociona a todo mundo, até porque a felicidade é muito mais que um brinquedo de papel e deveria estar no norte de todas as pessoas, desejando felicidades para todas elas, porque “é impossível ser feliz sozinho” – mas essa é outra música que nada tem de natalina.
Reza a lenda que Assis Valente compôs essa canção num momento de solidão e melancolia, ao ver uma figura na parede da pensão onde morava no Rio de Janeiro. A música foi gravada inicialmente pelo argentino radicado no Brasil Carlos Galhardo (1913-1985), muito famoso na época em que, para cantar, era necessário ser uma espécie de trovador.
A composição foi regravada pelos Novos Baianos em 1973, nos anos de chumbo da ditadura fascista (1964-1985), com um arranjo misturando a música de Assis Valente com pitadas de rock, como muitos fizeram e fazem na música popular brasileira.
Boas Festas, canta Carlos Galhardo
Outras importantes composições de Assis Valente foram gravadas por dezenas de grandes artistas. Mesmo assim, o baiano se matou em 1958, pouco antes de completar 47 anos. Como explicar a angústia de um grande poeta e compositor a chegar ao ponto de pôr fim à vida? Só Freud explica. Talvez nem ele.
Ele é autor da também clássica Brasil Pandeiro, rejeitada por Carmen Miranda (1909-1955) e gravada pelos Anjos do Inferno, em 1940. Roubado de sua família, Valente que foi vítima de trabalho infantil em boa parte de sua infância, saiu da Bahia para o Rio de Janeiro. Trabalhou de muitas coisas, mas a sua veia artística sempre falou mais alto. Suas canções eram gravadas pelos principais nomes da Era do Rádio, como Carmen Miranda (1909-1955), Orlando Silva (1915-1978) e o próprio Galhardo.
Via-se obrigado a vender muitas de suas canções, como inúmeros compositores do morro carioca faziam para sobreviver. O racismo aceitava ouvir as músicas de pretos em vozes de brancos. Os pretos já tinham muitas dificuldades e ainda têm.
Gravaram Assis Valente artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Nara Leão (1942-1989), Elza Soares (1930-2022), Martinho da Vila, Ademilde Fonseca (1921-2012), Isaurinha Garcia (1923-1993), entre vários outros intérpretes.
A maioria de suas canções virava sucesso imediato, a começar por Tem Francesa no Morro, gravada por Aracy Cortes, em 1932. Boas Festas e Cai Cai Balão, são de 1933. Já se sentia a sua veia irônica e de valorização da cultura popular brasileira. “Si vous frequentez macumbe entrez na virada e fini pour / samba / Danse Ioiô / Danse Iaiá”, cantaria a suposta francesa no morro.
Camisa Listrada, canta Maria Bethânia
Não há uma festa junina do país que não entoe “cai, cai, balão, cai, cai, balão, aqui na minha mão, não cai não, não cai não, não cai não, cai na rua do sabão”. Dizem os especialistas que essa música foi a primeira tipicamente junina gravada na história. Nada mais do que os cantores de maior sucesso do momento, Francisco Alves (1898-1952) gravou Cai Cai Balão junto com Aurora Miranda (1915-2005), irmã de Carmen Miranda.
Sua trajetória lembra um pouco a do escritor Lima Barreto (1881-1922), menosprezado pela elite da época, que não se matou, mas foi vítima do alcoolismo e morreu sem ver a sua obra devidamente valorizada.
Quando o compositor resolveu cantar a malandragem, que num dia fugaz saiu para impor o seu canto a qualquer custo… “Vestiu uma camisa listrada / E saiu por aí / Em vez de tomar chá com torrada / Ele tomou Parati / Levava um canivete no cinto / E um pandeiro na mão / E sorria quando o povo dizia / Sossega leão, sossega leão”. Camisa Listrada, gravada por Carmen Miranda em 1937, foi sucesso também com Maria Bethânia, em 1969.
As músicas de Assis Valente deram tiro certo no autoritarismo, no fascismo e no complexo de vira-latas, denominado por Nelson Rodrigues (1912-1980). Tamanha coincidência que Valente se suicidou em 1958, ano em que o Brasil ganhava pela primeira vez a Copa do Mundo, com uma seleção comandada por dois negros: Pelé e Garrincha.
Brasil Pandeiro, canta Anjos do Inferno
O compositor sabia como chegar aos corações de multidões de pessoas, como em Uva de Caminhão, gravada por Carmen Miranda, em 1939: “Caiu o pano da cuíca / Em boas condições / Apareceu Branca de Neve / Com os sete anões / E aí na pensão da / Dona Estela foram farrear / Quebra, quebra gabiroba / Quero ver quebrar”.
Sublime em Brasil Pandeiro (1940), foi gravada pelo grupo Anjos do Inferno e regravada pelos Novos Baianos, em 1973, com grande sucesso. Valente evoca “Brasil, esquentai vossos pandeiros iluminai os terreiros, que nós queremos sambar”, profetizando o que viria ser a intenção dos Estados Unidos para conquistar os corações brasileiros da pior forma possível, a dominação. Por isso:
Chegou a hora dessa gente bronzeada
Mostrar seu valor
Eu fui à penha fui pedir à padroeira para
Me ajudar
Salve o Morro do Vintém, Pendura-Saia
Que eu quero ver
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro
Para o mundo sambar
E reconhece que “há quem sambe diferente, noutras terras, outra gente. Um batuque de matar”, mas vale o argumento de que é preciso valorizar o que é feito por nossa gente sem se apegar ao passado, com a certeza de que as tradições mudam. Por isso, “batucada, reuni vossos valores. Pastorinhas e cantores. Expressão que não tem par. Oh! Meu Brasil”.
Para lá com todo o sentimento de vira-latas. Por isso: “Brasil, esquentai vossos pandeiros iluminai os terreiros / Que nós queremos sambar” para espantar os retrocessos que deseja o mercado (leia-se os muito ricos) contra todos os avanços civilizatórios do País.
Uva de Caminhão, canta Carmen Miranda
Em Fez Bobagem, ele canta que “deixou que ela passeasse na favela com meu peignoir / Minha sandália de veludo deu a ela para sapatear / E eu bem longe me acabando / Trabalhando pra viver / Por causa dele dancei rumba e foxtrote / Para inglês ver” (essa expressão que surgiu com a Lei Feijó, que proibia o tráfico de escravizados para o Brasil. Ficou conhecida como a “lei pra inglês ver”.)
Mas então é Natal. O tema do momento. Necessário falar de Boas Festas, pelas quais Assis Valente brinca com a festa natalina, os sentimentos de cada pessoa e a questão social. Essa figura lendária criada para a fantasia das crianças, que teve origem em São Nicolau, um bispo católico do século 4, onde atualmente é a Turquia, longe do Polo Norte, portanto.
Valente “mata” Papai Noel, compara a felicidade ao sonho infantil de Natal feliz e como seu Papai Noel não foi, ele conclui que “felicidade é brinquedo que não tem”. Muitas décadas depois vimos o Gabriel da Silva, de 12 anos, fotografado por João Paulo Guimarães com uma árvore de Natal que achou no lixão, a primeira de sua casa.
É esse sonho, essa fantasia, essa alegria, mesmo em tom melancólico, que Assis Valente canta em Boas Festas, sentimentos, muito bem captados pela gravação dos Novos Baianos. Porque a melodia também fala e toca os corações de todo mundo que sonha e deseja um mundo melhor para todos, como tocou a foto do menino Gabriel.
Afinal, Papai Noel morreu ou a felicidade é tão difícil de se encontrar no capitalismo tão hostil à vida de quem vive do seu próprio suor? E o Papai Noel que vive nos sonhos de inocentes crianças, que querem apenas serem felizes com seus familiares, vem um dia?
Boas Festas, cantada pelos Novos Baianos, num arranjo bem diferente
Texto em português do Brasil