Confesso que fiquei preocupado quando ouvi Walter Veltroni, o primeiro Secretário Nacional do Partido Democrático (PD), fundado em 2007, dizer literalmente que o PD deveria contrapor-se ao MoVimento5Stelle (M5S), que devia conseguir fazer alianças contra este partido!
Portanto, fazer política “em negativo”! Contra! Depois, a preocupação aumentou quando ouvi Michele Emiliano, Presidente da Região “Puglia”, dizer que “os tempos estão maduros para uma força nova”, visto que o “PD já não é uma força de esquerda”. Está tudo dito. Por detrás desta “insurreição” está Massimo D’Alema, um dos jovens promissores – juntamente com Veltroni – dos tempos do PCI de Enrico Berlinguer, que, pelos vistos, não gosta de Matteo Renzi. A quem acusam de não ser de esquerda e de dirigir um “Partido Pessoal”!
A caminho da cisão
A situação precipitou-se quando Renzi cometeu o enorme erro de promover o referendo constitucional sobre o Senado sem ter garantido que o seu partido estava compacto na defesa do “Sim!”. Perdeu e isso convenceu os que estiveram do lado do “Não!”, como D’Alema, que tinha chegado o momento de dar o assalto à Secretaria do PD, acantonando Renzi. Este acabaria por se demitir de Presidente do Conselho de Ministros e, agora, de Secretário Nacional do PD. Mas também acabou por decidir candidatar-se de novo à Secretaria do partido. Virão aí primárias, mas já sem uma importante parte do partido, que se prepara para dar vida a uma nova formação política. Mais de esquerda, ao que parece!
Temos, portanto, e mais uma vez, a eterna tendência da esquerda italiana para a fragmentação. E temos também uma tal indefinição de identidade que a estratégia já se reduz somente a impedir que o adversário ganhe as eleições. O que é sinal de que o centro-esquerda está a perder definitivamente a sua identidade. E é disto mesmo que está a ser acusado pelos secessionistas. Uma identidade que se foi perdendo cada vez mais na progressiva personalização do PD na figura de Matteo Renzi. E nisto talvez tenham razão, sendo certo que esta excessiva personalização da política provoca uma forte perda de tensão ideal e de organicidade das formações políticas. Na verdade, estamos a viver um tempo excessivo de “partidos pessoais” de todo o tipo, à esquerda, à direita e ao centro.
As sondagens
Mas quem é, afinal, este adversário tão poderoso, ao ponto de o PD esgotar nele a própria estratégia, afirmando-se tão-só por via negativa? E que força tem ele para condicionar a este ponto tão extremo a estratégia política do centro-esquerda?
A julgar pelas sondagens que vêm sendo feitas desde que em 2013 o M5S obteve 25.55% dos votos nas eleições legislativas (para a Câmara dos Deputados), este partido – que nasceu, do nada, em 2009 – mantém um score eleitoral digno de registo, apresentando-se como real alternativa ao Partido Democrático. Exemplos: no início de Outubro de 2016 a média de cinco sondagens (EMG, Piepoli, IXÈ, SWG e IPSOS) dava 28,42% para o M5S e 31,56% para o PD, uma diferença de 3,14 pontos percentuais; em meados de Fevereiro de 2017, a média de quatro sondagens (duas de IXÈ, EMG e INDEX) dava 27,87% para o M5S e 30,35% para o PD, uma diferença de 2,48% entre os dois partidos. Uma insignificância, pois. Os outros dois maiores partidos, a Lega Nord e Forza Italia, exibem, o primeiro, 13,4% e, o segundo, 12,3%. Tudo se decidirá, portanto, na dialéctica entre estas forças políticas (condicionada, no entanto, pelo sistema eleitoral que vier a ser adoptado).
O que é o M5S?
O M5S é, pois, um partido eleitoralmente consistente – mantém um score eleitoral alto deste 2013 – e poderá vir a ganhar as próximas eleições, podendo, depois, formar alianças com os partidos à direita para obter uma maioria de suporte ao governo. Partido interclassista, digital, populista, com uma agenda politicamente disruptiva, crítico impiedoso da velha classe política (La Casta) e do establishment mediático, defensor de uma democracia directa e de uma cidadania digital, tem um líder carismático, Beppe Grillo, que garante a coesão interna. As decisões sufragadas no portal do Movimento implicam sempre um agendamento obrigatório pelos grupos parlamentares do M5S, na Câmara dos Deputados e no Senado. Defende um referendo sobre o euro. E governa hoje, entre outros, os Municípios de Roma (Virginia Raggi) e de Turim (Chiara Appendino). (Para uma radiografia do M5S veja o meu ensaio “A política e a rede: os casos italiano e chinês”, em joaodealmeidasantos.com – Ensaios).
O Partido Democrático
O Partido Democrático resultou da evolução do velho PCI: PDS (Partito Democratico di Sinistra), DS (Democratici di Sinistra), ULIVO e PD. Incorporou também a ala esquerda da velha Democracia Cristã e deixou de fora a ala comunista (Rifondazione Comunista). Representa hoje o centro-esquerda em Itália, onde, como sempre, pululam outras pequenas formações políticas, à esquerda e à direita. A política italiana, todavia, decide-se hoje no quadro das quatro forças políticas que acima referi (PD, M5S, Lega Nord, Forza Italia), que representam hoje cerca de 83% do eleitorado.
O sistema eleitoral italiano está hoje em discussão (para já temos um sistema proporcional com prémio de maioria para a força que obtiver 40%) e não se sabe com que sistema se vai às próximas eleições, previstas para 2018 (se não forem antecipadas).
Os dados macro de Itália
Porque é que a situação italiana é preocupante? Porque o M5S e a Lega Nord – um partido de extrema direita liderado por Matteo Salvini – juntos representam cerca de 41% do eleitorado! Porque o PD se encontra à beira de uma cisão interna que acabará por dar a vitória ao M5S, dando início a uma perigosa deriva que pode ser fatal para Itália e para a União Europeia! Porque não ir ao combate político com uma estratégia para Itália, com uma identidade política bem definida, em linha com os tempos, e com uma liderança sólida, mas simplesmente para impedir que o adversário ganhe, é sinónimo de miséria política à esquerda. Porque esta tendência suicida da esquerda abre uma enorme clareira para o populismo xenófobo num país que se encontra numa encruzilhada sensível de fenómenos migratórios, com uma dívida pública enorme (133%), com um desemprego que ronda os 12%, com um crescimento anémico (cerca de 1% em 2016) e com um sistema financeiro em grave crise.
Pois, perante dados como estes, que se revelam cada vez mais insidiosos, o que é que o centro-esquerda faz? Desagrega-se, porque não é suficientemente de esquerda, mas também, certamente, porque não ficar atrás de outros países que se estão a revelar, também eles, férteis na derrapagem política da esquerda moderada, por exemplo, a Grécia, a França e a Espanha, para não dizer a Inglaterra. Sinceramente, eu creio que alguém com pesadas responsabilidades nesta área deverá compreender, com urgência, que o problema já é de paradigma, de uma narrativa a que já está a faltar uma cartografia cognitiva!
Que futuro?
Na verdade a encruzilhada em que se encontra Itália não é muito diferente da que se verifica em muitos países europeus. As grandes mudanças são estruturais e afectam os países desenvolvidos de modo semelhante. O exemplo dos Estados Unidos é ilustrativo e talvez já nem os vistosos desaires de Trump evitem coisas parecidas entre nós. Geert Wilders, na Holanda, que vai a votos já em Março está a ter um discurso absolutamente xenófobo e vai à frente nas sondagens, num país que outrora foi um grande exemplo de avanço civilizacional e de tolerância! Uma vitória deste radical de direita constituiria mais uma grave crise para a União. Na França, a esperança já só assenta no triunfo do bom senso na segunda volta das próximas eleições. Mais uma vez a política “em negativo”! Portanto, Itália não podia ficar atrás. Renzi tem acumulado erros fatais e D’Alema ajuda na corrida para o precipício. Mas como este país tem sido pioneiro em termos de experiências políticas é caso para temer o pior, até porque Beppe Grillo parece ser o legítimo sucessor dessa experiência radical levada a cabo, com sucesso eleitoral, por Silvio Berlusconi, com os resultados (no terreno da política e da economia) que se conhece. Mas esperemos que não!