Elisabete Azevedo-Harman recorda os constrangimentos da estrutura do partido Frelimo no processo de diálogo com Dhlakama, mas também a importância desta estrutura na salvaguarda da renovação do poder e na forte indicação do seu Comité Central no sentido da regionalização.
Jornal Tornado – E o que Nyusi vem trazer de novo nesta realidade política moçambicana?
Elisabete Azevedo-Harman – Houve alguma inocência dos analistas. O Presidente Filipe Nyusi foi o ministro da Defesa do Presidente Guebusa. Era o ministro da Defesa quando se verificaram os confrontos entre as forças de segurança e a Renamo. É verdade que o Presidente Nyusi é uma outra geração, muito mais novo que o Presidente Armando Guebuza.
É o primeiro não combatente que chega à Presidência e havia toda essa expectativa de uma geração mais nova de não combatentes. Mas Nyusi é filho de combatentes, nasceu na Tanzania no espírito de movimento de libertação. E, depois, não esquecer que o sistema moçambicano, apesar de ser altamente presidencialista, é um sistema altamente dominado pelo partido.
E isso é negativo?
Não, tem tido também aspectos positivos. Por isto é que nenhum Presidente se atreveria a ficar no poder mais do que dois mandatos. E não é só porque há limites constitucionais, é também porque o próprio partido Frelimo nunca deixou que um Presidente ficasse mais tempo.
Armando Guebuza, se mandasse na Frelimo, poderia ter mudado os mandatos e não mudou. O Presidente Guebuza é um histórico da Frelimo e sabe muito bem que a Frelimo impõe limites. É uma questão de estrutura do Partido.
O Comité Central reuniu recentemente por causa da dívida moçambicana, se olharmos para as duas primeiras filas deste órgão da Frelimo, são vários os que poderiam ser Presidentes da República. A Frelimo teve sempre essa riqueza.
Depois, há muitos processos eleitorais internos e as bases mandam muito no partido.
A base provincial, a base distrital, mais o bairro é muito pesada e ainda que possa parecer que há um conjunto de elementos que dominam o partido, há muitos contrapoderes que equilibram. E viu-se isso agora.
Uma situação de crise financeira, que levou a que a Frelimo reunisse o seu órgão máximo nacional e, depois de fechados três dias numa sala, fizeram uma comunicação ao país muito dura, com críticas muito duras ao governo, sugerindo até a descentralização.
Quer dizer que a estrutura da Frelimo não é um obstáculo para o entendimento?
Há vantagens e desvantagens. Há a vantagem de contrabalançar o poder, mas também tem a desvantagem de, quem quiser negociar a paz, tem primeiro de convencer o partido. A grande batalha que Joaquim Chissano teve para o acordo de paz foi dentro do seu próprio partido. Teve de convencer a Frelimo que o acordo de paz era a solução.
Isto quer dizer que mesmo que Nyusi tenha espírito negocial, primeiro tem que convencer o partido. Tem que ter as estruturas do partido a pensarem que essa é a solução.
Do Comité Central saiu a ideia de que o Governo deveria criminalizar, deveria começar a ponderar a criminalização da Renamo. Isso é muito diferente de uma directiva no sentido de promover o diálogo.
Mas uma administração bicéfala, como propõe Dhlakama é possível?
Na forma como é pedida pela Renamo não. Os receios que a Frelimo tem desde 1975, de que era preciso construir o Estado Moçambicano sem divisões mantêm-se. Esse receio está presente. Mas acho que os receios são infundados.
Os estudos de opinião pública têm demonstrado que o moçambicano se considera moçambicano acima de tudo, só depois vêem a sua etnia.
Quer dizer que o espírito de coesão nacional existe?
Existe. Neste momento começa a ser questionado com a ausência de um poder descentralizado. Por isso é que acho que o Comité Central da Frelimo esteve muito bem quando pôs nas suas três ou quatro decisões, a necessidade de uma vez por todas de haver uma descentralização efectiva. Em Moçambique o governador provincial é nomeado. O poder desconcentrado nas províncias não funciona. Tem que haver coragem para mudar e a Frelimo foi muito lenta e por isso deu-se espaço ao conflito.
Dhlakama está a aproveitar-se, e bem, daquilo que é o sentimento dos moçambicanos nas províncias. Mesmo os apoiantes da Frelimo querem mais capacidade de decisão nas províncias. Descentralizar, acho que é a receita para unir, neste momento.
Qual pode ser o papel da CPLP na pacificação deste conflito?
Primeiro, o governo moçambicano não aceita interferência estrangeira. Aquilo que a Renamo pede é a mediação da Igreja Católica, da África do Sul e da União Europeia. O que me parece viável é a intervenção de entidades moçambicanas, sobretudo as entidades religiosas. O Governo recusou, mas penso que ainda pode reconsiderar.
Depende muito das organizações religiosas, sobretudo da igreja Católica e a das autoridades religiosas muçulmanas. Neste momento parece-me que está fora da hipótese a mediação da CPLP.
Nem a Renamo confiaria nos países africanos de língua portuguesa, sobretudo os que são governados por movimentos de libertação, irmãos da Frelimo, que é o caso de Angola.
Mas, também a Frelimo não tem demonstrado qualquer abertura para uma intervenção externa nas negociações. Na última ronda, antes das eleições, aceitaram algumas individualidades como observadores.
O estatuto de observador é, apesar de tudo, diferente do de mediador. Os líderes religiosos moçambicanos, se forem envolvidos, têm que o ser enquanto mediadores e não meros observadores. É isso que a Frelimo tem de considerar, o que está a ser muito difícil.
Neste momento Afonso Dhlakama está no mato, o governo apenas assume a existência de distúrbios, não reconhece a existência de confrontos, demorou muito tempo a admitir a existência de refugiados moçambicanos no Mali, para ali empurrados pelo conflito. Neste momento não sei como se vai passar a dialogar, sobretudo agora numa situação de crise financeira provocada pela dívida moçambicana. Os empréstimos destinam-se ao reforço militar. Pergunta-se, negociar o quê e com quem?
O Movimento Democrático de Moçambique, o terceiro partido, gere os municípios de Beira, Nampula e Quelimane, capitais destas províncias, e tem sido excluído de qualquer diálogo. Quer por parte da Renamo quer por parte do governo.
Como diz o recentemente desaparecido D. Jaime Gonçalves, Bispo-emérito da Beira, por mais que se toquem batuques a pedir a paz, se os ouvidos não funcionarem, nunca mais vai haver paz. Parece um diálogo de surdos.
Angola pode ser uma ajuda neste processo?
A oposição em Moçambique criticou muito quando o Presidente visitou Angola. Porque pensou que Nyusi tivesse ido obter instruções de como combater o Dhlakama, como o MPLA combateu o Savimbi. Existe muito esse fantasma. Pensam que querem repetir aqui o que fizeram em Angola.
Mas, pelo contrário, acho que Angola pode vir a ter um papel importante. Primeiro não acredito que Angola esteja a incentivar a Frelimo a uma solução semelhante à que aconteceu com Savimbi. Pelo contrário.
No processo de paz angolano o MPLA, por exemplo, foi muito mais inclusivo, indo buscar ministros à UNITA. O caso do ministro Chicoti. Vários embaixadores, que o Presidente dos Santos chamou no processo de reconciliação, eram da UNITA. Há uma parte que o MPLA fez para reconciliar com a UNITA que aqui não foi feita. Isso pode ser positivo. Angola foi muito mais inclusiva entre as elites.
Por outro lado, a UNITA e a RENAMO nunca tiveram uma ligação entre partidos, como o MPLA e a FRELIMO. Mas, ultimamente, por causa das convenções internacionais dos partidos sociais-democratas e mais liberais, têm feito fóruns internacionais em que a UNITA o Casa CE, o MDM e a Renamo estão juntos. E essas pontes são interessantes.
Recentemente, encontrei-me com gente do MDM e da Renamo que estiveram com a oposição angolana e vinham muito sensibilizados para o que tinha funcionado em Angola.
Esta lição, que quer a oposição quer a Frelimo aprendem do outro lado, pode ter um efeito muito positivo no processo moçambicano. Embora o Estado angolano como mediador ou observador não seja bem visto pela oposição, se o Presidente Eduardo dos Santos nomear uma comissão que integre pessoas do Casa CE e da Unita, aí sim já seria possível um diálogo e Angola passar a ter um papel muito importante.
Porque todas as partes a ouviam. Poderia ser uma solução inovadora e interessante.