Portugal tem um dos sistemas eleitorais mais partidarizados do mundo. Com a possível abertura de um processo de revisão constitucional surge a possibilidade de o reformar. É esse o contexto em que resolvi partilhar convosco algumas ideias.
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O sistema eleitoral português no mundo
Os sistemas eleitorais parlamentares de Portugal e Espanha, baseados em listas partidárias fechadas, quer dizer, sem abrirem a possibilidade de intervenção do eleitor no seu seio, e sem possibilidade de candidaturas independentes, são sistemas fortemente partidarizados.
Para além da maioria dos países hispanófonos (América do Sul) e lusófonos (todos com excepção do Brasil) é difícil encontrar algum país do mundo com um sistema igual, a principal excepção sendo a de Israel.
Na União Europeia, apenas a Grécia – onde em qualquer caso, oito das circunscrições são uninominais, algo impossível entre nós – segue um sistema deste tipo, havendo alguns que se aproximam, como o da Roménia, onde em todo o caso são permitidos candidatos independentes, e o da Bulgária, onde, no entanto, coexistem listas nacionais e regionais.
Para agravar a partidarização do sistema, temos em Portugal a ausência de Senado e um Tribunal Constitucional extremamente partidarizado e – em larga medida por essa razão – uma ausência de regras de democracia interna partidária para elaborar essas listas fechadas, que levaram recentemente o Chega a estatutariamente aprovar o que é a prática de todos: o líder do partido faz o que entender com as listas de candidatos, e portanto é ele que nomeia os deputados em função dos votos que o partido granjear.
Quando o sistema foi criado em 1974 (não se alterou substancialmente desde que foi usado pela primeira vez em 1975 para as eleições constituintes) ele surgiu da liberdade revolucionária de criação de partidos políticos. Na década de 1970 foram as fundações dos principais partidos alemães as decisivas no apoio aos nascentes sistemas democráticos, ao ponto de, por exemplo, o PS português ter sido criado na Alemanha nas instalações de uma dessas fundações. É por isso provável que tenha sido a influência alemã que esteve por trás dos três nascentes sistemas democráticos europeus da época (Portugal, Espanha e Grécia) e através deles nas ex-colónias portuguesas e em países da América Latina com maior influência de Espanha.
Acreditava-se então em visões alternativas de construção do mundo (ideologias, de acordo com a vulgata marxista, que não entende, no entanto, o que Marx entendia por ideologia) que ditavam o alinhamento programático dos cidadãos. Tal como em inúmeros países do terceiro mundo, o socialismo era constitucional, e por isso mesmo todos os partidos o tinham no seu nome (repare-se que ‘social-democrata’ é o nome original do partido de Lenine e que a ‘democracia-social’ do CDS é um mero rearranjo do termo).
Nesta lógica, era de esperar que a ‘ideologia comum’ fosse o cimento do voto, e que, portanto, havia que esperar que o deputado tivesse necessariamente a mesma opinião do seu partido sobre o covid, a renda das casas, ou o estatuto do ministério público (para dar exemplos de matérias onde ele foi recentemente chamado a exprimir-se).
Este Portugal idealizado, se alguma vez existiu, quase cinco décadas depois, não existe já seguramente, e o partidarismo em que assenta está plenamente desfasado da nossa realidade.
O clubismo partidário é apenas travado pela figura de um Presidente eleito por sufrágio universal, figura que foi variando do inicial ascetismo mavórtico até ao presidente comentador televisivo que temos hoje, figura com pouco poder executivo, mas com enorme carga moral, transformação que reflecte a mudança de um país austero para um país que anda ao ritmo do ‘show-business’.
Entende-se talvez por isso a lógica da revisão constitucional proposta pelo principal partido da direita portuguesa que visa reequilibrar o sistema político em favor do Presidente e contra o Parlamento, como forma de o tornar menos partidário, opção na qual, como indiquei a semana passada, não me revejo. Voltarei proximamente à questão que me parece decisiva.
Em alternativa, creio que é necessário apontar antes para a despartidarização do sistema político, substituir o Tribunal Constitucional por um organismo não partidário; aumentar e facilitar o uso do referendo; multiplicar os sufrágios universais (no caso da justiça, seguindo aqui ideias de pessoa amiga, eventualmente com colégios especializados em direito inspirados na Constituição do Oklahoma) para um vasto leque de funções (provedores no lugar dos xerifes do passado).
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A Hungria e os limites do sistema eleitoral
Em todo este debate é, no entanto, importante refrear as expectativas. Foi já há três décadas que a convite do ‘National Democratic Institute’ (o grupo de reflexão mais institucional do Partido Democrata nos EUA) acompanhei os primeiros passos da democracia húngara em Budapeste.
A esta distância, forçoso é concluir que o processo democrático nesse país não evoluiu da melhor maneirra, dado que a Hungria foi o único país da União Europeia que os EUA resolveram não convidar para a sua Cimeira da Democracia.
Mas há trinta anos era dificilmente imaginável que era isso o que iria acontecer. A Hungria foi não só um dos países pioneiros da onda de democratização pós ‘cortina de ferro’, como, nomeadamente, instituiu o mais sofisticado sistema eleitoral que conheço. Na verdade, nessa missão à Hungria foram mais as ideias que trouxe do que as que levei, e foi a Hungria que inspirou ideias e propostas para a despartidarização do sistema democrático em Portugal.
O sistema eleitoral, que funcionou entre 1990 e 2010, combinava círculos uninominais, círculos regionais com representação proporcional e ainda um círculo de compensação em que, tal como se faz hoje nos Açores, se corrigia a proporcionalidade dos resultados dos dois anteriores.
O sistema previa duas voltas, tanto para o caso de nenhum candidato ter mais de 50% dos votos expressos como para o caso de a taxa de abstenção ser superior a 50% na primeira volta. O sistema tinha ainda a particularidade de deixar o lugar do círculo uninominal por preencher caso a taxa de participação fosse inferior a 25%.
O sistema acabaria de ser substituído em 2012 por outro mais convencional, em que apenas existem círculos uninominais, eleitos directamente, e um círculo nacional. O eleitor dispõe de votos diferentes para o círculo nominal e para o círculo nacional, sendo que, no entanto, os deputados eleitos neste último o são em função de um sistema misto que pretende repor alguma proporcionalidade.
O sistema eleitoral húngaro de 2012 é mais simples e em todo o caso melhor de qualquer ponto de vista que o sistema português, mas como sabemos, não impediu a degradação do sistema democrático húngaro com o seu líder a declarar publicamente que não se revê na democracia liberal e substituindo os EUA pela Rússia e pela China como parceiros privilegiados.
A lição que retiro trinta anos passados sobre a minha experiência húngara é a de que é um erro pensar que se consegue democratizar um sistema político através do desenho do sistema eleitoral; o sistema eleitoral é importante, mas é apenas uma peça de uma complexa engrenagem social.
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Que processo de reforma?
O principal desafio com que estamos confrontados é o de como questionar a partidocracia promovendo a democracia. Para isso, a primeira coisa que temos de fazer é não inverter com a nossa história a saudável relação que devemos ter.
O revivalismo salazarista interessa simultaneamente a quem procura ganhar no passado a credibilidade que lhe falta no presente e a quem nos procura convencer que a alternativa ao presente é o passado.
A ressurreição do salazarismo seria a ressurreição de um Portugal que já não existe e que não voltará a existir. Da mesma forma que o salazarismo foi buscar no passado inspiração para os seus instrumentos de repressão, qualquer autoritarismo contemporâneo poderá fazer o mesmo com o salazarismo, mas a realidade é que não conseguirá encontrar os mecanismos usados pelo salazarismo para ganhar aceitação social porque essa sociedade salazarista não existe nem virá a existir.
Todo o décor de congressos a 28 de maio e de reinvenção de slogans de ‘Deus, Pátria e Família’ são peças teatrais de propaganda a que não devemos emprestar qualquer credibilidade, sendo antes claros e firmes em matéria de substância.
À partidocracia nacional interessa fazer crer que a alternativa ao que nos oferece é o regresso ao salazarismo, e tem por isso um enorme interesse em dar algum realismo à ameaça de regresso ao passado e esconder que as alternativas democráticas existem e são mesmo generalizadas nas democracias, na União Europeia e fora dela.
O primeiro passo para a reforma é assim o de colocar o debate no mundo em que vivemos e recusar os exercícios revivalistas, ou seja, debater reformas adaptadas à sociedade portuguesa no seu contexto internacional.
O segundo passo é o de refrearmos as tentações voluntaristas. A reforma ideal, o sistema eleitoral perfeito saído das melhores cabeças, arrisca-se a ser contraproducente se não for sentido e desejado pela sociedade.
Em terceiro lugar, o dilema com que estamos confrontados é o de não ser possível esperar que o quadro parlamentar seja o motor de uma reforma que o põe em causa, mas ser igualmente impossível fazer essa reforma contra esse quadro parlamentar, e esse dilema deixa-nos um espaço estreito de manobra. Acima de tudo, o dilema leva-nos a optar por alguma paciência estratégica que nos permita estar atentos e preparados para quando a oportunidade surgir.
A reforma do sistema político terá necessariamente de passar igualmente pelo poder local e pela representação europeia, com preocupações que são comuns, e por essa razão estes dois palcos políticos vão igualmente ser importantes nesse processo.