O conflito quase secular existente na Palestina é tratado erroneamente pela opinião pública como um problema palestino-israelense, originado de uma disputa supostamente político-religiosa travada entre os judeus, por um lado, e pelos palestinos (muçulmanos e cristãos), por outro.
Alguns são levados e pensar que se trata de um problema meramente relacionado à disputa por um território que pertencera aos judeus – os “escolhidos”, para exercer o seu domínio sobre o gênero humano – em tempos remotos da história e que voltaram para reclamar o seu direito histórico adquirido e fundar o seu Estado naquilo que eles chamam de “Terra Prometida”.
Podemos afirmar que o conflito é parte de um contexto mundial que evoluiu a partir do surgimento do movimento sionista internacional, um movimento nacionalista judaico surgido na Europa no século XIX, que pregava o estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu”, que seria concretizado através da criação, na Palestina histórica, de um Estado puramente judeu para judeus, não só em sua estrutura sociopolítica, mas também em composição étnica, de cuja estratégia paz parte o atua lestágio de apartheid racista e limpeza étnica, que teve início quando em 1947 a ONU promoveu a partilha injusta e ilegal da Palestina, território sobre o qual não tinha qualquer jurisdição ou poder.
Com seus 27.000 km², a Palestina é um território que do ponto de vista econômico, político e militar tem uma posição bastante estratégica, localizada na divisa da África e Ásia, e bem próxima da Europa. A Palestina é dona de um vasto litoral banhado pelo Mar Mediterrâneo e pelo Sul chega-se ao Golfo de Áden, ao Mar da Arábia, ao Golfo de Omã e ao Oceano Índico. E daí, para o resto de mundo. Este é o sentido estratégico geopolítico da Palestina, além de ser a terra sagrada para as três principais religiões monoteístas: muçulmana, cristã e judaica.
Dois episódios contribuíram decisivamente para o agravamento desse cenário e estão na raiz do conflito interminável e pelo sofrimento, desterramento e apartheid vivido pelos palestinos até os dias de hoje. O primeiro foi a chamada Declaração Balfour, uma carta enviada em 2 de novembro de 1917 pelo secretário de Assuntos Estrangeiros britânico, Lord Arthur James Balfour, ao Barão Lionel Rothschild, líder da Federação Sionista da Grã-Bretanha. Na carta, Balfour transmitia aos sionistas a intenção do governo britânico em facilitar a criação de um “lar nacional judeu” na Palestina, caso a Inglaterra se consagrasse vitoriosa na guerra contra o Império Otomano, que detinha o poder sobre a Palestina.
A Declaração Balfour foi uma iniciativa unilateral de uma grande potência europeia sobre um território não europeu, em completo desrespeito à população nativa. Uma promessa ilegal feita por meio de uma carta, tornou-se um documento considerado internacionalmente, passando a influenciar e integrar um sistema de normas da Liga das Nações, uma organização internacional criada em 1919 pelas nações que se sagraram vitoriosas na Primeira Guerra Mundial. A carta tornou-se base jurídica das reivindicações do movimento sionista e suas pretensõespela terra palestina.
A segunda foi a decisão da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), através da aprovação da Resolução nº 181, definindo um Plano de Partilha que dividiu a Palestina secular em dois Estados: um palestino eoutro judeu, que adotou o nome de Israel e tornou-se oficialmente um Estado, em 1948, dando início a toda sorte de violações e apartheid racista e genocida que conhecemos hoje.
Uma partilha ilegal em todos os sentidos
Em decorrência da tensão entre os movimentos nacionalistas árabes e judaico, a Grã-Bretanha solicitou ao Secretário-Geral da ONU, o norueguês Trygve HalvdanLie, a convocação de uma sessão extraordinária da Assembleia Geral para discutir alternativas políticas para o problema palestino. Assim, em 5 de maio de 1947, foi criado o Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP, da sigla em inglês), formado por onze Estados-Membros, entre os quais não figurava nenhuma das grandes potências, destinado a investigar as questões relevantes da disputa territorial e recomendar uma solução diplomática, a ser deliberada pela Assembleia Geral, cujo tema mais importante era o fim do Mandato Britânico, reivindicado tanto por palestinos quanto por judeus.
A primeira possibilidade oferecida pelos membros do UNSCOP, foi a da Palestina se tornar um único Estado democrático, cujo futuro seria decidido pelo voto majoritário da população. Essa proposta teve inicialmente o apoio dos Estados Unidos. Porém, sob pressão do lobby judaico e com o objetivo de conquistar o apoio e o voto dos judeus para sua reeleição em 1948, o presidente Harry Truman decidiu que os Estados Unidos apoiariam o Plano de Partilha. Como se vê, os Estados Unidos não adotaram o seu voto por qualquer consideração estratégica na questão palestina, mas por puro oportunismo eleitoral do seu presidente para captar o dinheiro e o voto dos judeus para sua eleição.
Após dois meses de intensos debates, foi aprovado no Comitê a proposta da partilha territorial da Palestina para a criação de dois Estados nacionais independentes, ignorando totalmente a composição étnica da população do país. Se essa composição tivesse sido considerada, o chamado Estado de Israel teria sido criado com não mais do que 10% do território, porque era o que representava a população de judeus na Palestina.
O Plano de Partilha foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 29 de novembro de 1947, numa sessão presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha. A Assembleia contou com a presença de 56 dos 57 Estados-Membros e teve o voto favorável de 33 países, 13 votaram contra e 10 se abstiveram. A decisão da ONU tornou a Palestina no único Estado destruído para que fosse implantado sobre as ruinas do seu território e sobre os corpos dos seus mártires, um estado monstruoso. A decisão da ONU colocou a vida de milhares de palestinos nas mãos de um movimento racista que pregava a transformação de um território de etnia mista em um Estado de pureza étnica, bem ao gosto dos nazistas.
Na Partilha, a parte destinada para criação do Estado judeu incluía as áreas agrícolas e as cidades comerciais, ou seja, as melhores terras férteis, as fontes de água e todo o litoral da Palestina, enquanto que para os palestinos foi destinado nada menos que um deserto, terras pedregosas e morros inférteis. Além do mais, decidiu-se por Jerusalém sob o controle da ONU, tirando a cidade árabe milenar das mãos dos palestinos.
Os países árabes rejeitaram terminantemente essa solução, porque representava uma grande injustiça doar as terras palestinas para um povo estrangeiro, pois deslocariaa população milenarmente estabelecida e criaria uma anomalia no mundo árabe, colocando sob o controle dos judeus trazidos da Eurásia e Europa, áreas econômicas consideradas chaves para os palestinos.
Com a Partilha, os judeus que detinham 7% do território, passaram a ter 53%, enquanto os palestinosficaram com 47%. Uma partilha injusta sobre todos os aspectos, já que aquela terra era o lar de mais de 1 milhão e 400 mil palestinos, enquanto que a população de judeus era de 630 mil, dos quais dois terços eram imigrantes, vindos particularmente da Polônia e da antiga União Soviética, que haviam chegado à Palestina por meio da transferência populacional ilegal, promovida pelo movimento sionista internacional, desde o final do século XIX.
A Partilha foi também uma decisão ilegal da Assembleia Geral das Nações Unidas, porque não foi realizada qualquer forma de consulta aos habitantes da Palestina. Ademais, a ONU não estava investida de nenhuma soberania sobre a Palestina e não poderia valer-se de nenhuma autoridade ou direito de soberania. A ONU não tinha nenhuma prerrogativa que a permitisse dividir um Estado para atribuir parte do seu território para que uma minoria estrangeira oriunda da Europa fundasse o seu Estado. A ONU não tinha direito ou permissão para conceder a imigrantes de diversas nacionalidades, direitos territoriais e políticos diferentes dos concedidos aos habitantes seculares da Palestina.
A decisão da Assembleia Geral da ONU violou o princípio elementar do direito onde “quem não tem a propriedade de uma coisa, não pode cedê-la a outro”. Então, há de se perguntar: a ONU tinha direito de ceder parte do patrimônio nacional milenar palestino a estrangeiros provenientes de diversas partes do mundo, sem nenhum vínculo com aquela terra, para criação de um estado ideológico e racista?
Uma outra questão a ser considerada é a de que a Assembleia Geral das Nações Unidas não era uma instância dotada de soberania para a tomada de uma decisão compulsória de tal envergadura. A Assembleia Geral ultrapassou os limites de suas atribuições, já que este poder, segundo a Carta das Nações Unidas, é reservado ao Conselho de Segurança, a quem compete decidir e aplicar com exclusividade.
Após a efetivação da partilha, o que se viu foi início da Nakba, palavra árabe que significa catástrofe e se refere à partilha da Palestina, para criação do estado de Israel através da destruição de mais de 400 aldeias e vilarejos, expulsão deliberada de mais de 800 mil palestinos de suas casas e terras, e a morte de mais de 250 mil pessoas. Após a criação do Estado de Israel, as ordens dos chefes sionistas foram claras: matem qualquer árabe que encontrarem, incendeiem todos os objetos voláteis e derrubem as portas com explosivos.
Israel segue violando o Direito Internacional
As atitudes adotadas pelos sionistas após a criação do estado de Israel não aconteceram por acaso e nem somente naquele momento da ocupação. É um comportamento corriqueiro, fruto da brutal arrogância que caracteriza o Estado judeu desde o seu nascimento em 1948, cuja lei que predomina é a do mais forte e do fato consumado, num desafio permanente diante da mais alta instância internacional. Israel negou-se sempre a respeitar as disposições da Resolução 181, ignorando as fronteiras delineadas na resolução, que tinha sido uma das condições, juntamente com a Carta das Nações, para a aceitação de Israel como Estado membro da ONU.
Entretanto, este não é o único dispositivo/norma internacional que o Estado de Israel ignora. Israel vemobstinada e repetidamente desrespeitando a maioria das decisões e tratados internacionais ratificados por eles mesmos. Israel nega-se a respeitar a Resolução 194, de 7de dezembro de 1948, que assegura o retorno dos refugiados palestinos a seus lares. Também não respeita a resolução 303, de 9 de dezembro de 1949, que proclamou a internacionalização de Jerusalém e a sua administração pela ONU, enquanto não para de propalar ao mundo que Jerusalém é a sua capital.
Em 1967, Israel utilizou a Guerra árabe-israelense(Guerra dos Seis Dias) como desculpa para a ocupação da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental e alguns territórios de outros países. Mais uma, e pela segunda vez desde a Nakba em 1948, ao menos 500 mil palestinos foram expulsos de suas casas, em outra tentativa de anexação de território e limpeza ética.
Nesse mesmo ano, após a ocupação desses novos territórios, o Conselho de Segurança da ONU adotou a Resolução nº 242, de 22 de novembro de 1967, na qual solicitava, entre outras coisas, a retirada das Forças Armadas israelenses dos territórios recém ocupados e o respeito pelo reconhecimento da soberania, da integridade territorial e da independência política de todos os Estados na região e seus direitos de viver em paz com segurança e fronteiras reconhecidas. É claro que esta resolução do Conselho de Segurança da ONU também foi desrespeitosamente ignorada por Israel, que permaneceu nos territórios palestinos ocupados, não reconheceu o Estado da Palestina nem permitiu que seu povo vivesse em paz.
Em 2004, novamente utilizando-se de subterfúgios para dizimar o povo palestino, expulsá-los de suas terras e mutilar seus jovens capazes de lutar, após a morte de 3 israelenses, Israel ataca e bombardeia Gaza impiedosamente durante 50 dias, resultando em mais de 270 mil refugiados, mais de 2 mil civis mortos (incluindo mais de 500 crianças), e mais de 11 mil civis palestinos feridos, incluindo quase 4 mil crianças. Além disso, cerca de 7 mil dispositivos explosivos não detonados continuam no local, representando constante risco para a população, principalmente para as crianças.
Ainda em 2004, após o início da construção do muroda vergonha que segrega os territórios palestinos, a Corte Internacional de Justiça lançou parecer consultivo concluindo sobre a ilegalidade da construção do muro em território palestino ocupado, e o Conselho de Segurança da ONU adotou a resolução nº 1544, de 19 de maio, exortando Israel a cumprir os tratados e normas internacionais.
Em 2016, o Conselho de Segurança da ONU aprovou nova resolução, novamente exortando Israel a por fim a seus assentamentos ilegais em territórios ocupados após a guerra de 1967. Nem é preciso dizer que Israel novamente ignorou por completo mais esta decisão da ONU, da qual é membro e, em teoria, obrigado a cumprir as decisões dela provenientes.
Desde a adoção da Partilha do território palestino para a criação do estado de Israel, em 1947, dezenas de massacres foram cometidos com o objetivo de realizar uma limpeza étnica que permitisse a transformação de uma terra milenar e multicultural, em um Estado judeu apenas para judeus. Desde a partilha, 534 cidades, aldeias e vilarejos foram despovoados e centenas de milhares de palestinos expulsos de suas terras, cujos descendentes cobram permanentemente o direito ao retorno, assegurado pelo Direito Internacional.
Que país é este que os sionistas criaram sobre as ruinas da Palestina, destruídas pelas bombas e balas de seus fuzis? De acordo com as regras das ciências políticas, para que um território seja considerado como um país, são necessárias três regras: ter uma terra, um povo e um governo. Até hoje não se sabe qual a terra e as fronteiras de Israel; não se sabe quais são as características e de onde vem historicamente o povo israelense; e não se tem uma forma, segundo os padrões internacionais, em relação ao governo fora da lei que governa Israel.
Desde a Partilha ilegal da Palestina, diversas tentativas de confecção de um acordo de paz definitivo foram feitas. No entanto, de que adianta assinar novos acordos, se Israel simplesmente ignora a todos? De que adianta nova decisão de organismos internacionais, se elas são obstinada e ilegalmente ignoradas? Israel age como se estivesse acima da lei e de toda a comunidade internacional, vivendo de acordo com a lei da força, onde o mais forte consegue o que quer e passa por cima dos mais fracos, impunemente. De nada adianta criar novos tratados e resoluções, se os já assinados e adotados não são cumpridos e não passam de letra morta. É necessário aplicar os já existentes, utilizando todos os meios cabíveis de coerção, a começar por sua suspensão das Nações Unidas, já que o cumprimento do acordo de partilha de 1947 foi condição para sua aceitação como membro da ONU. Tudo isso de forma a obrigar Israel a respeitar o Plano de Partilha, que eles já aceitaram e assinaram, voltando às fronteiras delimitadas antes de 1967, reconhecendo o Estado da Palestina e assegurando sua soberania.
O povo palestino busca a libertação da ocupação ilegal sionista, quer que os ocupantes saiam de suas terras para que possam constituir o seu Estado e para que os expulsos e seus descendentes possam regressar para ela. Esse é um direito natural, humanitário e político, assegurado pela Carta das Nações Unidas e por diversas Convenções internacionais.
Um povo que lutou tantos séculos contra ocupações, não se importa quanto tempo a ocupação judaica permaneça em sua terra, eles sabem que os ocupantes serão derrotados, porque os palestinos estão com a justiça, apesar de todo aparato militar e apoio estadunidense que Israel possui. O direito à terra e ao retorno são inalienáveis. Palestinos são persistentes no direito de retornar e de reestabelecer o seu estado independente.
por Sayid Marcos Tenório, Historiador e internacionalista e Secretário-Geral do Instituto Brasil-Palestina (IBRASPAL) e Aysha M. Gouveia é advogada e especialista em Relações Internacionais | Texto em português do Brasil
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