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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Passeio matinal

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Apetecia-me ver discorrerem as longas ruas da manhã, acordei com vontade de inventar para mim um silêncio que me encaminhasse a um destino inventado.

Sentei-me numa berma qualquer tentando ver a cor das coisas, o bramir das palmas nas paragens, o reinventar perante a existência, o frenesim que deambulava os carreiros de pedra, os sapatos barulhentos, apetecia-me mesmo sentir como se sentem as histórias.

Levo sempre um caderno para descrever a cor das coisas, decorar o beijo solto que divaga e segue e nada mais é fantasia, é tudo uma realidade descrita numa folha vaga, meio amarrotada, mas onde consigo descrever com palavras as verdades das incúrias escondidas por detrás de tudo que possa ser um jeito próprio de caminhar, o fundo fosco do horizonte, as maresias caladas, tudo me merece uma atenção especial decorada em cartões para turistas e visitantes do templo desta manhã que quero só minha. São as minhas sensações a desflorarem rua abaixo num vago eléctrico da cidade, uma cidade única, mas de toda a parte, uma cidade chamada de tudo para ser nossa, a minha vontade ali estampada como um cartaz de convite.

Vejo degraus vazios, sinto passos e nada mais vejo a não ser escadas, é tudo tão inebriante e fascinante, a felicidade cansa e a gente perpetua-a no imaginário deste papel riscado, já tantas as coisas nele descritas. Uma cidade de rotinas, mas diferente todos os dias, são as rotinas divagantes, umas vezes de norte para sul e outras vezes para norte, ruas que descem e sobem num vagar apressado como que a parecer existir vontade de as modificar, vê-las diferentes consoante o ângulo em que as veja. Jardins diferentes, tudo é efeito de algo, mas nada passa a ser indiferente, fascino-me diariamente quando me levanto e deambulo ruas de indiferenciados referenciados nas linhas escritas num desenho azul nas páginas amarrotadas desta dispersão que nunca se cansa, mas que me ensina a ver o mundo numa cidade presente.

A minha cidade não é inventada mas sim recriada numa vontade de que só a mim me apetece descrevê-la, aparece sozinha como que de uma fada se tratasse, é linda de verdade e tudo nela encanta, verdade, até o zumbido de cantares populares me fascinam, fazem-me viajar cânticos e trovas antigas, poemas riscados de que poeta vendendo cautelas para a felicidade de alguns, tudo é vasto e belo, e eu, sentado neste banco de jardim sonho com as estrelas que a natureza me devolverá mais tarde.

Sinto a areia levantar-se ou a relva a crescer, algo diferente mexe-se por debaixo dos pés ainda calçados, o banco tremula sob o vento distante e eu nele ainda, vivendo as ilusões de quem recria a vida nas folhas de um caderno cansado de ser usado.

Pensei em repetir este gesto, frequentar diariamente os caminhos trilhados na pele e suar a fome por esta vontade de um dia a pertencer, senti-la minha e nossa como se de cavernas se tratasse noutros tempos, vontade de sentir o vento que soçobra, o riso que esboça os limites do seu curso, o limiar das fontes que nascem creio que distantes mas vê-las contenta-me, talvez seja pedir pouco mas que importa, a vida é um sorriso madrugador e a gente entendo-o como nosso, um pertence intrínseco, como o caminhar ou falar, nada se aprende e tudo se ensina, somos filhos de tantas verdades amigo, falo-te de mim comigo sozinho a conversar com as lágrimas que se enxugam na única resma de papel que possuo. O teu caderno da cidade.

Poderá um passeio matinal ser tanta felicidade?

Não, mas pode ser o remanescer para tantas idades, a idade dos que partiram colados a esta cama ainda adormecida e que me inspira, ensina, faz com que a cidade seja neste quarto uma súmula sem vaidade, a vaidade cansa e canso-me da sua existência, a cidade mora ainda sozinha sempre que a visite, espera-me cantando volúpias por cada esquina que o sonho permitir.


do livro Reflexões Profundas,
Vítor Burity da Silva
Crónicas


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