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Sábado, Dezembro 21, 2024

Passes sociais: quando a esmola é grande o pobre desconfia?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A adopção de novos tarifários para os passes sociais afigura-se-me  um interessante exercício de construção de uma política pública, merecendo algumas notas sobre o que se sabe desta construção e uma chamada de atenção para a necessidade de avaliação.

Tem havido algumas observações “à Rui Rio” tentando gerar rivalidades entre habitantes  de diferentes áreas metropolitanas  e de diferentes comunidades intermunicipais e já vi escrito o que coloquei em título do presente artigo:”Quando a esmola é grande o pobre desconfia”. Eu próprio tive a experiência de explicar a nova medida a beneficiários menos atentos e fui testemunha da sua surpresa quando tomaram consciência da amplitude das reduções. Não pediam tanto …

Ter-se-á ido demasiado longe? O novo tarifário será eleitoralista ? E se é necessário investir nos transportes colectivos para melhorar a sua capacidade e a sua perfomance não se deveria ter antes mobilizado para tal efeito os recursos que se foram buscar ao  Fundo  Ambiental para financiar os novos tarifários?

Concertação entre os municípios no quadro das áreas metropolitanas, com o apoio do Estado

A impressão que foi transmitida ao público foi que, em Lisboa, a Área Metropolitana teve um papel decisivo na concertação entre municípios e na aceitação, por parte destes, da necessidade de contribuírem financeiramente para a solução encontrada, o que do ponto de vista politico parece ter sido impulsionado pelo PS, sobretudo pelo presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, que controla juridicamente a Carris e de facto também o Metro, e pelo PCP, mas terá tido também apoio das Câmaras PSD, cientes dos interesses dos seus munícipes. No Porto parece ter sido o envolvimento do Ministério do Ambiente no diálogo com as autarquias a propósito do Metro do Porto e dos STCP.

Esta concertação terá tido igualmente uma base técnica, assente em inquéritos sobre o tráfego de passageiros  entre concelhos, embora este aspecto do processo não pareça ter merecido a atenção da comunicação social. A criação, no essencial,  de apenas dois tipos de passes – municipal e metropolitano,  com variante idosos – resulta em substanciais vantagens para aqueles que residem fora de Lisboa e se deslocam todos os dias à capital. Aliás os benefícios vêm sendo estendidos, por acordo, a áreas limítrofes.

Não creio em todo o caso que se possa falar em eleitoralismo, com vista às eleições de 2019, uma vez que o processo foi construído nos anos anteriores  e não nasceu na preparação da Lei do Orçamento de 2019, que se limitou a dar enquadramento ao esforço orçamental necessário.

Concertação com os operadores de transportes

Também igualmente complexa terá sido a concertação com os operadores de transportes, alguns dos quais tinham sinalizado o desejo de abandonar o antigo passe social e que, quase todos, se queixam da falta de regularidade dos pagamentos.

Assinale-se aliás que a repartição da receita global pelos  operadores se baseará em estimativas assentes em inquéritos de tráfego e que o número de utilizadores e o padrão de utilização se tenderá a modificar justamente por efeito da entrada em vigor dos passes metropolitanos, o que poderá levar a pedidos de reajustamento.

Não posso entretanto deixar de chamar a atenção para que o Estado, aquando das nacionalizações de 1975, efectuou um substancial esforço financeiro e organizativo, que levou à criação de  Rodoviária Nacional modernizada e reequipada, pouco tempo depois regionalizada e finalmente privatizada em peças separadas. Agora que parece claramente estabelecido que o transporte colectivo urbano e rodoviário de passageiros  merece um grau substancial de provisão pública não me repugnaria  defender que o Estado voltasse a tomar conta da produção pública. Só que há aqui uma questão de ordem táctica: se os municípios se vissem confrontados exclusivamente com operadores estatais seriam muito mais reivindicativos e menos propensos a desatar os cordões das respectivas bolsas, ou seja, por estranho que pareça, o sucesso da negociação que levou à adopção do novo sistema de passes pode ter sido favorecido pela multiplicidade de interlocutores.

Registou-se aqui um episódio curioso com a Fertagus, que deu entender que não iria aderir porque o seu contrato de concessão estaria pendente de renegociação, mas que em fins de Março lá estava a vender passes municipais e metropolitanos. Terá o Estado dado garantias ao grupo Barraqueiro, seu “sócio” na  TAP que a concessão seria renovada?

Devo dizer que considero aceitável tanto a permanência da Fertagus em mãos privadas, com adequada revisão das condições da concessão, como a sua passagem a empresa pública, inclusive por o material circulante ser já público, mas não defendo a passagem da exploração para a CP : seria perturbar a gestão do “comboio da ponte”, muito focada neste  e com uma boa performance,  e tornar ainda mais complexa a gestão da CP.

Efeitos do novo tarifário sobre a opção entre transportes colectivos e individuais

Foi a expectativa de que, com o novo tarifário, se deslocariam utentes de alguns dos operadores transporte individual para o transporte colectivo, que serviu de justificação tanto à amplitude da descida como à generosa comparticipação do Fundo Ambiental.

Mas aqui há que ter em conta que a generalidade dos operadores  foi divulgando que não dispunha de quaisquer estudos sobre o impacto da redução tarifária na utilização dos transportes colectivos, ou seja sobre o efeito do preço na procura, sendo portanto a medida adoptada em grande parte um salto no escuro. E embora alguns dos operadores públicos prometam melhorar a oferta ou alterar a velocidade de circulação (caso do Metro de Lisboa) não é certo que, justamente num contexto de redução de receita por passageiro consigam financiar os melhoramentos necessários.

Aliás apesar de medidas que integram o pacote tarifário, como a não cobrança de passagens aos menores de 12 anos e os passes familiares, favorecerem em teoria que os pais usem transportes públicos para levar os filhos à escola, na prática a localização das escolas longe das paragens dos transportes colectivos, os horários de trabalho dos pais,  e a lotação dos transporte colectivos  na hora de ponta poderão continuar a impor a muitos pais a utilização do transporte individual. 

Como objecção final, aponto um possível efeito-rendimento: o acréscimo de rendimento disponível decorrente, para muitas famílias da redução dos tarifários, pode gerar poupança, pode permitir financiar outros consumos, mas no caso de famílias que dispõem de transporte individual e o utilizam simultâneamente com transportes colectivos através do pagamento de passagens ou mesmo de passes, pode ser aplicado num aumento do número de dias em que a família utiliza o transporte individual. Ou seja, nesta última opção o novo sistema tarifário geraria um efeito perverso.

Necessidade de avaliar esta política pública

Poderia indicar muitos casos de políticas públicas que nunca foram avaliadas e até de medidas legislativas que depois de aprovadas  não foram aplicadas a qualquer processo.

Espero que no caso presente o sistema que criou os novos passes e lhes garantiu estas condições tarifárias vá sendo devidamente avaliado através dos registos de utilização dos transportes (hoje em dia mesmo os detentores de passes têm de validar os títulos), dos inquéritos ao tráfego, e da verificação do grau de continuidade de utilização de transportes individuais. Para que esta política seja ajustada naquilo que deve ser ajustado e possa ser defendida contra ataques injustificados.

 

Declaração de interesses: pessoalmente, mudei  de um passe Lisboa-Idoso, 14,70 euros, para um passe metropolitano – idoso, 20 euros.

Todavia parece-me indispensável dotar a empresa de um Acordo de Empresa próximo do da CP.

 

 

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