“Uma terra só é pátria quando tiver palavras que os próprios dicionários desconhecem.”
José Adelino Maltez
É de um aconchego intelectual muito agradável poder citar pensadores portugueses a propósito do que se passa no mundo, em especial porque Portugal não é reconhecido pelo seu pensamento. Somos mais de trivialidades, de esgrimas muito recalcadas, com floretes rombos e calças ajustadas cheias de nódoas; gastamos o tempo a dizer mal de quem faz as obras à nossa porta enquanto deixamos apodrecer o frigorífico nas traseiras, esse mesmo a que nos afeiçoámos tanto, onde congelámos a cerveja para ver aquele jogo da taça e o pernil de porco para juntar à feijoada naquele aniversário inesquecível.
Sim; somos de traseiras. Dessas onde passajamos a língua e dizemos mal das vizinhas, onde estendemos roupa que encharca a da vizinha da qual dizemos mal, dessas onde acumulamos o lixo que arde descontroladamente todos os verões – embora a culpa seja sempre do Governo, no qual não votámos e do qual desdenhamos, por ser o bode expiatório dos males do nosso mundo, mesmo quando construímos na arriba fóssil e ilegal que destrói a paisagem e as vidas, a culpa é sempre “deles”, danadas criaturas.
Assim criámos um sedimento, um guano que nos serve de camuflagem, de onde só saímos para emitir uma coisa sintética e inorgânica que julgamos ser convictamente o nosso sentido crítico – e não é mais do que a vã crença, imoral, sem ética e estática, de que ainda temos opinião, se é que o domínio de tão débil cultura possa servir para tanto. No pequeno estádio nacional, arremessamos palitos, com o ar de quem lança varas olímpicas.
Os nossos juízos de valor servem-nos como a crítica que nos falta.
Foi neste contexto que criámos uma Pátria, que aliás ocupa um lugar paradisíaco onde bem podíamos fazer um País. Não é coisa irrepreensível nem de excelência, essa coisa da Pátria, mas é um cantinho que muitos invejam e que usa e abusa de palavras que os próprios dicionários desconhecem. Algumas são mesmo as que os acordos ortográficos tentam acompanhar, mas o nosso analfabetismo e resistência à mudança é incapaz da alteração.
Somos habitantes dos nossos hábitos: isso é a Pátria. A mesma que Pessanha poetizou simbolicamente, a mesma que os sebastianistas legaram às carpideiras, a mesma que Salazar transformou num monturo de estrume pouco fértil, a mesma que os messianistas viram em Pina Manique, João Franco, Sidónio Pais ou em Cavaco, Portas e Coelho, antipatriotas lestos na subserviência de interesses estrangeiros, gente da mesma hipocrisia que os inquisidores de D. João III ou reis herdeiros (hoje seriam ilibados já que nem o juiz Carlos Alexandre conseguiria, por mais anos que andasse a esgravatar, arranjar provas contra eles, pois provariam com facilidade que quem executava os réus eram as autoridades civis, e que os clérigos não podiam condenar ninguém à morte, segundo o direito canónico).
É a política que ainda hoje a nossa oposição tão bem conhece: não fui eu, foi aquele menino. A mesma Pátria, mas de patriotismos bem diferenciados.
Somos isto, eu convosco. O que é que se pode fazer?
Agora, a novidade é temer ou aplaudir Donald Trump. Como há dias foi temer Temer e chorar por Dilma. Como há tempos foi ser Charlie ou outras coisas que nos desinquietaram os afetos mas que logo nos apressámos a serenar, até porque morrem mais por ano na A1, autoestrada cavaquista e mal parida, do que no Bataclan de Paris ou naquela Aleppo das notícias.
Nós próprios estamos com a moda. Votámos em Marcelo por ser um populista. Todavia, mais inteligente que muitos e com um sentido de Estado e de proximidade que percebe que este poiso a que chamamos Pátria andava órfão – e ofereceu-se, pai, a quem até eu já estou grato e apoiei outro (como é bem sabido).
E sim, o populismo está na moda. Um populismo retrógrado, que confere a vitória aos mais ignorantes, aos que desdenham da cultura e da história apenas porque não a conhecem (ainda há dias li um inquérito junto a uma população ativa dos 18 aos 35 anos. Não sabiam, maioritariamente, nada do mundo que os rodeia, em matéria de ciência, política, história, religião. Nem o nome do Papa que anunciou a sua visita a Portugal em meados de Maio).
É nesse populismo e sobretudo nessa ignorância, que tanto ajuda os poderosos a manterem os seus poderes, que nasce o mundo que vemos nascer todos os dias: o do neonacionalismo das direitas, inimigo do global e sobretudo inimigo do ser humano, que nunca foi, aliás a sua prioridade.
Andámos, no entanto, todos à espera deste tempo. Com o fim da União Soviética veio o fim da Europa de Leste. E pudemos avançar para trás: para o regresso às vésperas da Primeira Guerra Mundial.
Houve tempos em que a luta era às claras: de um lado a cimitarra, espada em forma de meia lua, coisa lá das gentes do crescente fértil e do oriente, médio; contra a espada cristã, em forma de cruz, porque o culto da morte pode prolongar-se braço fora até à santa crença da vitória.
Mas agora é a doer, mata-se em massa, a começar pelo uso da arma da mentira: temos drones, temos nanotecnologia, temos cibernética, temos tudo: menos códigos de conduta, menos ideologias, menos respeito pelos seres humanos.
Os índices de desenvolvimento e de riqueza individual dos norte-amercianos subiu sem equívocos nos últimos sete anos. Donald Trump disse ao eleitorado o contrário e o senado deu-lhe as chaves do mundo. A luta agora também é nossa. Se quisermos ter uma Pátria a que chamemos nossa, com uma palavra qualquer, mesmo dessas que os dicionários (ainda) desconhecem.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90