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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Patrícia Reis e a construção do vazio

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Ou como se cria
A golpes de menina-tesoura

Só se escreve entre duas margens: a da morte nunca anunciada e a que nos tirou da quietude e nos vai sobressaltando, que a essa chamamos vida mesmo sem sabermos defini-la com acerto.

Quem não escreve com a sabedoria do percurso, sem ter da morte alguma visão e da vida as suas sensibilidades, não mexe com quem lê.

Quem lê vai no caudal: quer saber de si, de nós o que, entre margens, tem/temos para partilhar.

É claro que há projetistas, nisto da escrita. Construtores com peças de encaixe e a vontade de ganhar a vida às custas dos menos avisados. Por isso, não escrevo sobre os livros de todos,  mas de alguns. Como dos livros de Patrícia Reis, que vão de margem a margem.

Patrícia Reis, a autora

É dela, de Patrícia Reis, uma espécie de trilogia – espécie, repito – que vai de No Silêncio de Deus (2008), se remete a Por Este Mundo Acima (2011) e, pela mão dela chega à minha mão, reage em A Construção do Vazio, a cheirar à tinta fresca de 2017.

Ressalvo que os três títulos são uma espécie de trilogia, porque são três tempos originais do que se narra, têm confluências, claro, como os rios, uma personagem aqui e muitas obsessivas escadas culturais e sensuais (é de sentidos que se trata) que resumem mais além a autora e a libertam enquanto espaço narrativo. E o espaço é afinal, quase sempre, a construção de vazios. Porque todos nós determinamos esses espaços, mais ou menos ocultos, todos nós somos não-lugar (como diria o antropólogo) e todos nós somos a bipolaridade dos preenchimentos e das punções que lhes fazemos.

A Construção do Vazio, o livro

Em A construção do Vazio conta-se a história de Sofia, uma menina-tesoura que sobrevive a uma relação de violência e abuso e cresce com a convicção de que a maldade supera tudo.

O primeiro ocaso é ser uma menina. (Sim, ocaso, por de Sol, tendência à penumbra). É uma questão de género, diríamos, porque as meninas, antecâmeras de mulheres, são sofrimentos distinguíveis caso a caso. O segundo ocaso, melhor, o segundo eclipse, é constatar tratar-se de uma menina-tesoura. Não ocorre logo o paralelismo com Tim Burton e o seu originalíssimo encontro com Peg Boggs e Edward, esse mago que possui apenas enormes lâminas no lugar das mãos e uma sensibilidade de artista incomparável. Tal como no filme de Tim Burton – Eduardo Mãos de Tesoura –  também a menina de Patrícia Reis nos traz  dúvidas intensas: “será possível atenuar a dor? Como se resiste ao fantasma real da infância?  Que decisões partem dessa memória e podem limitar a vida?”.

Como no pensamento oriental – veja-se por exemplo a noção de nada absoluto cunhada pela Escola de Kyoto – também a protagonista deste livro, Sofia, procura o lado limpo, no sentido da demanda do que é vago, numa ascese incomum. Abriga-se na amizade de três homens, Eduardo, Jaime e Lourenço, e vive sem desejo, sem vontade; de construção em construção, o vazio é o (seu, nosso?) objectivo final.

A autora, o livro e eu

Posso acrescentar que conheço a Patrícia Reis, “minha” (brilhante aluna) em licenciatura e em mestrado. Mulher digna desse nome. Mas mais justo será dizer que a reconheço. E que me ajuda na construção do meu próprio vazio. Por exemplo, aqui leva-me nesta novela para o entendimento da escuridão, que só se conhece entre margens.

Paulo Teixeira Pinto ofereceu-me há alguns anos um quadro-espelho onde escreveu: ”a felicidade não é a luz mas o que permite ver sem luz”. Patrícia Reis, agora mesmo, oferece-me um livro onde se denota: “A escuridão é mais forte do que todas as hipóteses de luz”.

O meu lado de leitor contemplativo olha para o quadro-espelho, para a menina-tesoura e para a escritora-sobrevivente e entende luz e sombra e sobretudo a conjugação dos sentimentos que nos fazem entre margens (e por vezes merecedores dos nossos opostos).

A Construção do Vazio | Patrícia Reis, 2017 | Editor: Dom Quixote

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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