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Terça-feira, Julho 16, 2024

Pax Sínica

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.
  1. As rotas da seda

Foi há quatro anos que Siegfried O. Wolf, meu associado no South Asia Democratic Forum, iniciou uma coluna irregular a que deu o nome de ‘Pax Sinica’ antecipando o espectro de um mundo dominado pela China.

Autor em 2019 do que na altura foi a análise mais global das chamadas ‘Rotas da Seda’ (ou Iniciativa de polos e comunicações, BRI, no acrónimo em língua inglesa) publicado até então, Siegfried Wolf estava bem posicionado para entender a lógica da expansão chinesa que teve o seu principal símbolo nesse mecanismo de financiamento e controlo de infraestruturas no mundo inteiro.

Na verdade, o mecanismo estava na altura a atingir o seu nível máximo de crescimento, depois de uma década em que o investimento externo chinês cresceu exponencialmente. No seu período de abertura, o relatório oficial da BRI relativo a 2022 diz-nos que ‘o financiamento e investimentos da BRI permaneceram estáveis em 2022 com os US$ 67,8 bilhões, em comparação com os US$ 68,7 bilhões de 2021’.

Mais importante do que isso, o noticiário relativo à BRI passou a ser dominado mais pelo fenómeno da armadilha da dívida externa (com as autoridades chinesas a negar vigorosamente que esse possa ser o caso) que ele provocou; pelas dificuldades financeiras dos países que a ele mais recorreram na Ásia do Sul (o Sri Lanka e o Paquistão), para as suas consequências ambientais negativas e para a falta de eficácia em muitos dos seus projectos.

A China enfrentou também uma crise financeira interna de grandes proporções, centrada na construção civil, que foi durante décadas o principal motor de crescimento da procura interna. Essa crise financeira fez-se sentir também na capacidade chinesa para continuar a financiar os grandes projectos externos ligados ao BRI. Mas como Siegfried Wolf se apercebeu, a ‘Pax Sínica’ desenvolve-se em vários outros planos.

  1. Da cooperação à rivalidade

A cooperação ocidental com a China começou a partir da cisão sino-russa dos anos 1960, passou relativamente incólume às brutais manifestações ditatoriais do regime e só começou a ser repensada seriamente há pouco mais de uma década, quando se tornou impossível não entender que a China continuava a crescer como colosso geopolítico e que tinha como ambição esmagar a hegemonia geopolítica e doutrinária ocidental.

De uma forma geral, as reacções foram tardias e desadequadas aos desafios enfrentados. Lembro a iniciativa da Administração Obama de encerrar a esquadra aérea nas Lajes, como o argumento de concentrar as forças militares no Pacífico, que teve como resposta imediata a proposta chinesa de ocupar o lugar vago pela força aérea americana.

Quando essa ideia surgiu, a China já se tinha tornado em potência global e estava já a ocupar posições em todo o mundo, incluindo a Europa e a América, pelo que o movimento anunciado (e posteriormente revogado) feito em nome da contenção da expansão chinesa, facilitava, contrariamente ao antecipado, os planos chineses de expansão.

Está por saber se o plano actual americano de cortar o acesso chinês às principais tecnologias de computação não terá sido também demasiado tardio para obter os efeitos requeridos.

Com a crise do COVID, constatou-se que a China adquiriu uma notável capacidade de liderança mundial, levando a que a generalidade do mundo copiasse a sua doutrina de fascismo sanitário. A óbvia cooperação sino-ocidental que levou à fuga do vírus em Wuhan foi criteriosamente escondida (três anos depois as elites ocidentais continuam a duvidar que tenham sido os laboratórios de Wuhan a origem do vírus).

A eclosão do credo irracional criptomaníaco ajudou a sabotar a confiança no sistema financeiro centrado no dólar. Este sistema, que no essencial permaneceu inalterado depois da crise de 2008, enfrenta agora uma nova crise numa situação de enorme fragilidade.

Os países europeus seguiram, com algum atraso e distanciamento, a evolução da diplomacia americana perante a China, sendo que, como ficou claro com as viagens e declarações do chanceler Scholz o ano passado, e a mais recente repetição dos seus passos pelo Presidente Macron, que a Europa aposta num equilíbrio sino-americano e não em confrontar o poderio chinês.

O fiasco da invasão russa da Ucrânia – que na melhor das hipóteses para Putin, acabará com um país devastado e isolado – obrigou o Kremlin a assumir-se como uma aliado submisso a Pequim com pouca ou nenhuma capacidade estratégica autónoma.

Também a República Islâmica do Irão, que tentou durante algum tempo alimentar uma imagem de autonomia estratégica perante Pequim, se viu forçada nos últimos anos, perante a imperiosa necessidade de fazer face à revolta dos iranianos, a alinhar-se de forma mais incondicional na sua lógica. Posto isto, a Pax Sínica está longe de conseguir manter um equilíbrio estratégico entre os seus clientes, sendo seguro, por exemplo, que o expansionismo iraniano irá continuar.

  1. O islamismo e os desastres diplomáticos norte-americanos

Os EUA herdaram no século XX parte da visão tradicional da diplomacia britânica, nomeadamente, na complacência perante o islamismo. Os EUA tornaram-se assim no principal sustentáculo do que foi durante muito tempo um dos mais conservadores dos regimes islâmicos, o wahabismo saudita; apoiaram a Índia islamista contra a Índia secular, apoiaram também na fase inicial a guerra do islamismo contra as suas minorias no Médio Oriente, incluindo a guerra com Israel, e contemporizaram com a revolução islâmica iraniana.

Mesmo perante o choque do 11 de Setembro, persistiram as mesmas lógicas. Fizeram a guerra aos talibã, mas em aliança com o seu principal patrocinador, o Paquistão, numa estratégia condenada ao fracasso. Distanciaram-se da Arábia Saudita enquanto país, mas viraram-se contra a monarquia quando esta denunciou o islamismo e decretou o fim do wahabismo como religião do Estado.

Se o Presidente Trump tentou conciliar os negócios com o emirato wahabita do Qatar com o apoio à liberalização dos Emiratos Árabe Unidos e do Bahrain, a administração Biden hostilizou tudo e todos para se colar às prioridades diplomáticas do islamismo radical do Qatar, ignorando ostensivamente o seu apoio ao terrorismo.

Seguindo fielmente a política do Qatar, os EUA entregaram o Afeganistão aos Talibã; promoveram e promovem o apaziguamento com o Irão, menorizaram a aliança com a Índia e o Japão, excluídos por um acordo de defesa minimalista, o Aukus.

A debandada do Afeganistão convenceu tudo e todos de que os EUA não eram um aliado de confiança. A Rússia sentiu que tinha o caminho livre para a invasão total da Ucrânia – e se se enganou, foi mais na sua leitura da incapacidade da Ucrânia e da passividade europeia. A China ocupou o espaço vago, afirmando-se como o poder forte da região. Para além do Paquistão, passou a ser também a potência de referência do Afeganistão e do Irão.

É nessas circunstâncias que se dá a mudança mais radical e de consequências mais catastróficas: a Arábia Saudita abandona a sua aliança com os EUA, aceita a suserania chinesa e a paz nos termos oferecidos por Teerão.

Os EUA perdem assim todos os seus aliados no golfo e encontram-se apenas juntos ao emirato islamista do Qatar, que foi quem os pressionou a tomar as opções suicidárias que tomaram, emirato que aposta totalmente no colapso do mundo aberto.

Os lobby islamistas poderosamente instalados no seio do Ocidente – em particular nos EUA – são a maior ameaça que o Ocidente enfrenta. Se não o entender a tempo, é o futuro da liberdade que está em questão.

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