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Sábado, Novembro 2, 2024

Pela Folha, não visto amarelo

Tereza Cruvinel, em Brasília
Tereza Cruvinel, em Brasília
Jornalista, actualmente colunista do Jornal do Brasil. Foi colunista política do Brasil 247 e comentarista política da RedeTV. Ex-presidente da TV Brasil, ex-colunista de O Globo e Correio Braziliense.

A Folha de S. Paulo agora é “um jornal a serviço da democracia”. Ótimo. Mas não aspire a Folha ao título de campeã da democracia nem pretenda que vistamos amarelo a seu pedido. E não apenas pelo apoio à ditadura – mais que um “erro”, como diz o editorial de ontem, um crime que não pode ser esquecido.

Na democracia da Folha, em tempos recentes, faltou compromisso com o pluralismo,  sobrou intolerância e houve aversão ao resultado das urnas, quando os eleitos, como Lula e Dilma, a contrariam. Injetando ódio no antipetismo, o jornal foi  co-artífice do golpe de 2016, ajudando a abrir caminho para Bolsonaro.

Sobre a ditadura, a Folha agora vai dar um curso, ministrado em quatro módulos pelo jornalista e escritor Oscar Pilagallo, um ex-funcionário. O terceiro abordará o  período pós AI-5, o mais infame e cruel, em que a tortura, as mortes e desaparecimentos tornaram-se práticas do terror de Estado. Também neste período a Folha apoiou o regime, ao contrário do que disse no editorial de ontem:

A censura calava a imprensa, que apoiou o novo regime num primeiro momento, caso desta Folha, que errou. Este jornal viu-se rapidamente engalfinhado pelo novo sistema de poder, perdendo a capacidade de reagir antes mesmo de percebê-lo.”

Não foi só no primeiro momento, nem a Folha se engalfinhou com o regime. Não foi obrigada a colaborar, como outras empresas, com a montagem da Operação Bandeirantes, a tenebrosa Oban. E isso já é História.

No relatório final da Comissão Nacional da Verdade está documentado que o Grupo Folha deu não apenas apoio financeiro e ideológico ao golpe de 1964, mas apoio material e operacional à repressão e à caçada dos opositores do regime, já depois de 1968 e do AI-5;  Emprestou veículos de distribuição do jornal para a realização de tocaias contra militantes, muitos deles mortos no local, mesmo não tendo reagido.

O relatório da CNV lista diversas empresas que ajudaram a montar a Oban, embrião do sistema Doi-Codi. Recorre à tese de doutorado da pesquisadora Beatriz Kushnir – “Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988”, que “constatou a presença ativa do Grupo Folha no apoio à Oban, seja no apoio editorial explícito no noticiário do jornal Folha da Tarde, seja no uso de caminhonetes da Folha para o cerco e a captura de opositores do regime”.  A Folha sempre negou o uso dos carros mas muitos presos e torturados falaram da presença deles nas operações da repressão.

Nos anos 80, é verdade que a Folha apoiou a campanha das diretas desde o início e com isso conquistou um leitorado progressista e democrático. Mas a democracia não é só o direito de eleger governantes e a defesa dos direitos humanos, a condenação à tortura, à censura e ao arbítrio institucional. É também respeito ao pluralismo e ao contraditório, e sobretudo, o acatamento da vontade popular.

Muito antes do mensalão e do petrolão, que armaram a mídia com o discurso de combate à corrupção, a Folha já demonstrava sua aversão aos governos petistas. Não tendo assimilado a vitória de Lula em 2002, já combatia com ganas seu governo antes de 2005, quando estourou o mensalão, cuja cobertura foi um massacre nunca reservado a outros partidos e acusados. E quando Dilma tornou-se candidata em 2009, chegou a publicar uma ficha policial falsa da ex-presidente, atribuindo-lhe a participação em ações armadas das quais não participou. Quando a Folha admitiu o erro, o estrago eleitoral já fora feito.

Foi neste período que os veículos de imprensa, incluindo a Folha, expurgaram de seus quadros muitos profissionais que não se engajaram na chacina ideológica, não por serem “petistas”, mas por razões jornalísticas, deontológicas mesmo.

Mas registro uma conduta antidemocrática da Folha sobre a qual talvez ninguém mais falará. A existência de um sistema público de radiodifusão é atributo das democracias. Todas elas – as que são dignas do nome – têm suas TVs e serviços públicos de informação e comunicação, lacuna que o Brasil nunca havia preenchido. Mas quando Lula atendeu a um movimento vindo da sociedade, liderado por Gilberto Gil, e decidiu criar a EBC, que implantou a TV Brasil e passou a gerir como públicas as emissoras de rádio e outros serviços até então estatais, a Folha foi o veículo que fez a mais implacável oposição ao projeto. Não detendo concessões de radiodifusão, espancou a EBC ininterruptamente, pelo menos ao longo dos quatro anos em que presidi a empresa. Chamava a TV Brasil de TV do Lula, desqualificava sua programação, apegava-se à questão da audiência como critério de valoração absoluto e buscava o tempo por alguma irregularidade, que nunca encontrou. Não tendo tido interesses ameaçados, moveu-se por razões ideológicas, porque havia Lula na iniciativa.  Mas um jornal a serviço da democracia não deveria apoiar a comunicação pública, que é da essência das democracias contemporâneas?

Entretanto, depois do golpe de 16, quando Temer deformou a EBC, alterando sua lei e promovendo a caça às bruxas na empresa, e agora, quando Bolsonaro completa a desconstrução, militarizando seu comando e rebaixando-a à condição de aparelho de propaganda de seu governo, não se ouve qualquer censura da Folha.

Também por isso, seu fervor democrático não pode comover os verdadeiros democratas, ao ponto de vestirem amarelo a seu pedido.


Texto original em português do Brasil



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