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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Pequeno Sangue, de Maria F. Roldão

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Ed. volta d’mar, 2021

Conhecia Maria Roldão como a corajosa editora da Revista NERVO, dedicada à poesia e que já vai no nº9, de 2020. É poeta e resistente e convida para a ela se juntarem outros, oferecendo neste colectivo de poesia uma variedade de vozes que vindas de outros lados nos enriquecem mais. Portugal tem grande tendência para se fechar nos seus e com os seus, e há tempos que o mundo mudou e nem sempre dão por isso, neste país dito de poetas, o que nos empobrece, e muito. Pois bem, chegam às editoras e às livrarias disponíveis para o que se chama, injustamente os mais pequenos, finalmente as outras vozes, as novas vozes, livres, originais, desprendidas, exprimindo sentimento, reflexão, pensamento que apenas presta contas a si próprio. É um imenso progresso, e oferece um imenso prazer a quem os lê, aos novos que aí estão a correr os seus riscos, com um Nervo que sustenta corpo e alma, e preenche com um “pequeno sangue” as veias de uma poesia envelhecida, esvaziada.

Aqui está Maria Roldão, com um livro que é estreia, e de quem se espera que continue assim: pequeno ou grande, em cada poema transporta sentimento renovado, reflexão contida, mas inspirada e que também inspira quem a lê.

A capa é de Sérgio Ninguém, que já nos habituou, em EUFEME, a capas bem concebidas, contendo indicação mais explícita ou menos, de um conteúdo que vamos enfrentar: Aqui, sobre fundo negro, um coração arrancado a um corpo que vai deixar correr esse pequeno sangue…

Começando a leitura pelo fim, destaco OURO:

Percorro-lhe o corpo pequeno

verificando as falhas

os excessos.

Entro e saio inúmeras vezes

da loja das palavras

em busca de sinónimos.

Compro metáforas a peso de ouro. 

Fica caro o poema

– ruína do poeta.

(p.50)

Aqui se lembra que este corpo é o das palavras, que a inquirição é permanente, procurando falhas, despindo os excessos, para chegar a uma nudez perfeita. É esse o Ouro escondido do poema, envolto nas metáforas.

E sublinha-se a VOZ:

Aqueduto por onde

correm as palavras.

Distribui o

relato

consoante a sede.

Muitos ouvidos 

formam um 

regato.

Estamos perto da emoção de traços orientais na sua poesia. Mas Maria Roldão evoca também outras leituras de poetas que amou, em CEMITÉRIO DE TRAÇAS:

O estômago ressequido das traças liberta o

pó das minhas leituras. (…) E vejo agora Sophia e Cinatti em

pequenos montinhos – levíssimos -, com as

asas partidas e o coração à ré. Única virtude: 

misturarem-se os dois na mesma penugem

de indigestão.(…)Agonizantes – secam em cima das estantes,

regurgitando rimas, versos brancos e métrica.

(p.48)

Eis o que fica dos outros que amamos, em nós que os absorvemos até que secam, feitos poeira de memória, nos livros arrumados que estão lá cima nas estantes, entregues à devoração das traças, que se alimentaram com o tempo, de rimas, versos brancos e métrica – aquela que agora chega a nós, na sua diferença.

Não posso no espaço exíguo de um post citar tudo o que gostaria que fosse lido por todos: porque em cada poema nos surge algo de inovador, imprevisto e com traços de humor subtil. Deixo os títulos, como em OXIGÉNIO, o corpo-bola de carne, mas que respira…ou IMPROVISO: assoo-me ao riso.  Herança de haiku presente em poesia culta  ainda que embrulhada em expressões que só a um iletrado parecem quotidianas. Si, abordam o quotidiano, até ao mais íntimo da sexualidade, por vezes, como em RENDIÇÃO (p.36), ou ATRITO(p.27), ou ainda SISMO (p.25), ou LEGO (p.23) que deixo já entregues à curiosidade do leitor.

Em PEQUENO SANGUE (p.20) que dá nome ao livro, é o vestido que assume as funções do corpo e da palavra entregue:

Dou sangue ao vestido.

 Abro-o com o coração desabotoado

e enfio-me na primeira  trégua do linho.

(…)

Desenhas uma casa 

com o meu corpo. Dispo-me.

Engomas o sangue que despi.

E vou chegando ao fim agora pelo princípio. Momentos de um quotidiano real, o dos dias e as suas acções misturam-se, – é a vida a entrar pela escrita dentro, sendo que a escrita se tornará cada vez mais forte:

preciso de pensar com absoluta nudez –

ideologias, cismas, tensão

e arbítrio

são fibras que me pesam

(p.12)

E para que se compreenda o todo do que se segue, Maria avisa:

Debulho em delírio a pele entre as palavras.

 

Maria F. Roldão

Pequeno Sangue

 

Ed. volta d’mar

2021

 

 


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