Quanto cabe em um minuto e cinquenta segundos? Talvez, quase nada. Mas a Federação Peruana de Futebol conseguiu colocar 36 anos e um país inteiro. Foi lançado na semana passada um vídeo que apresenta o Peru para os seus adversários.
Querida França (Dinamarca e Austrália também ganharam propagandas idênticas), me chamo Peru. Depois de 36 anos estou de volta, passou muita coisa e talvez você não se lembre de mim. Então, quis escrever isso para relembrar quem somos”.
O vídeo fala da estética, passando pela comida, pelas paisagens e cultura.
Mas nem tudo são flores e a realidade é retratada, desde os casos de feminicídio, da economia peruana, da desigualdade, a indiferença e até as enchentes de 2017 que afetaram meio milhão de peruanos. E que é usado como gancho para mostrar que graças à união do povo que conseguiram seguir em frente. Ou melhor, como bem lembram na propaganda, para Arriba, já que o país é montanhoso com os Andes e, por exemplo, o lago Titicaca, o mais alto navegável do mundo.
Ainda falam das perdas futeboleiras, como o acidente de 1987 em que os jogadores e comissão técnica do Alianza Lima estavam em um avião que caiu no mar e todos faleceram, exceto o piloto (cena em que um menino atira flores na água enquanto o narrador diz que “perdemos jogadores”).
Também há uma referência a Daniel Peredo, um locutor esportivo famoso por lá, que morreu aos 48 anos, em decorrência de um ataque cardíaco depois de jogar uma partida de futebol, em fevereiro deste ano. Fanático pela seleção, acompanhou e narrou todos os jogos das partidas classificatórias e era o nome certo para o mundial.
E claro: como não citar Guerrero? O maior artilheiro da seleção (33 gols em 84 jogos) aparece quando se fala de ‘’mostrarmos essa raça guerreira que ele nos ensinou”. O jogador, aliás ainda aguarda uma decisão sobre sua situação após o caso de doping por tomar um chá de folha de coca e que havia sido suspenso por seis meses. Mas, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) informou que a punição dada ao atacante Guerrero foi ampliada para 14 meses, sendo definitiva, não cabendo, portanto, recurso ao jogador. Ou seja, além de não jogar a Copa, perderá o contrato com o Flamengo (que encerra dia 10 de agosto). Ele já havia cumprido os seis meses determinados anteriormente. Mas a coisa tomou uma proporção maior quando a mãe do jogador acusou Pizarro de estar envolvido no esquema para tirar o atleta.
A Fifa já declarou que teria que romper com o WADA (Agência Mundial Anti-Doping) e que isso é impensável. Mas enquanto isso, Paolo Guerrero segue treinando e aguardando por uma decisão favorável (leia-se um milagre).
O vídeo foi postado e enviado nos idiomas de cada um dos países que serão adversários no Grupo C e bem recebido por todos que responderam em espanhol, com destaque para a Federação Australiana “Sabemos como vocês se sentem. Esperamos 32 anos para voltar a uma Copa, em 2006. Nos vemos em campo na Rússia”.
Apesar de adorar a Copa, é nesta época que o pior das pessoas também vem à tona: o tal do patriotismo exacerbado. E com ele, a xenofobia. Não me esqueço do quanto os nossos vizinhos foram achincalhados por aqui na última Copa. Sim, pode parecer piegas, mas eu torço pelos sul-americanos. A luta aqui contra a desigualdade e indiferença nos faz beirar o realismo mágico de Gabriel García Marquez. Ou em qual outro lugar do mundo o imprevisível está à espreita em cada esquina? Vivemos de (e nas) tragédias e tentamos superá-las. Então como não torcer para o Peru?
Além da campanha para a classificação, incrível e que emocionou a todos que curtem bom futebol, a propaganda da Federação foi certeira: nos faz lembrar um país que é esquecido. Sim, afinal quantos se lembram do Peru? Aliás, o nome do país só voltou a estar no mapa, principalmente para os brasileiros, graças ao Paolo Guerrero. Ademais, mesmo o Paolo Guerrero sendo um jogador conhecido, nos cabe o questionamento: a punição atribuída. Culpado ou não, ele já cumpriu a pena de seis meses. Por que acrescer mais tempo? Deixar um jogador fundamental para o Peru fora da Copa é um pecado sem tamanho. E se fosse um jogador europeu? E se fosse um Cristiano Ronaldo? O mesmo aconteceria? Até mesmo se fosse um Messi?
Mais um ponto: em dois minutos de propaganda, apenas três cenas extremamente rápidas com televisores. Enquanto estamos acostumados a ver muitos comerciais com cenas assim, não só em época de Copa, mas em todos os torneios. O que era um espetáculo, se torna espetacularização. O que era vivido, se tornou representação. É só ver o tanto de vídeos em que não aparecem lances, mas pessoas com celulares (não aparece nenhum durante a propaganda peruana), telões e ninguém olhando para o campo. A imagem tem se sobreposto ao esporte, que se torna um mero coadjuvante. A ideia hoje em dia é fazer e ser uma imagem, num ambiente que se tornou apenas um ambiente de imagem e não de catarse, em que nada tem de culto; é uma experiência que deve ser vivida e em que todos deveriam fazer parte. E sim, eu falei deveriam, porque o esporte se tornou um negócio. Mas este é outro assunto.
Outro fator que nos prende: a seleção estar perto de seu povo. A maioria dos jogadores não atuam no Peru (os convocados em geral estão atuando pela América Latina), mas fizeram sua preparação no Estádio Nacional e, ao contrário da seleção brasileira que teve um treino aberto em que tiveram senhas distribuídas, pessoas amontoadas e tratadas como gado pela CBF, os peruanos tiveram treino aberto com 20 mil pessoas, e ainda 96 bolas autografadas distribuídas a torcedores.
O Peru joga seu último amistoso contra a Escócia, hoje no Estádio Nacional, perto de seu povo, onde não perdem para uma seleção europeia desde 1995. A estreia na Copa do Mundo está marcada para o dia 16 de junho, 13h, no horário de Brasília.
Assista ao vídeo:
Por Guadalupe Carniel, Jornalista, pesquisadora e autora do blog Morte Súbita| Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
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