Assusta imaginar que um escritor como o norte-americano Philip Roth (1933-2018) talvez tivesse dificuldade para publicar o primeiro livro nos dias de hoje.
Tempos atrás, em uma entrevista, o escritor britânico Ian McEwan apontou Philip Roth como o autor contemporâneo que provavelmente ainda estaria sendo lido daqui a cem anos: Os leitores aprenderão com ele tudo o que precisam saber sobre a angústia do século 20. Suas obras-primas cômicas, especialmente O Complexo de Portnoy, vão se manter engraçadas ainda. Se tudo acabar dando errado, os tipos humanos do século 22 ficarão fascinados com o relato de Roth sobre o fascismo americano”.
Se tudo der mais errado ainda, eu diria, os livros de Roth serão massacrados ainda neste século – não pelo desinteresse dos futuros leitores, mas pelo ímpeto censor do presente. Roth é o alvo perfeito para um certo tipo de leitura que rejeita livros e autores que não se enquadram em determinadas regras – ditadas, muitas vezes, por uma visão limitada não apenas da realidade histórica, mas da própria arte. Elementos não faltam para condená-lo à fogueira moral. São tantos os cafajestes na obra de Roth que um tribunal que julgasse seus personagens apenas pela régua dos bons costumes e dos bons sentimentos provavelmente teria dificuldade para encontrar um inocente.
Do incorrigível misógino Mickey Sabbath, de O Teatro de Sabbath, ao lascivo David Kapesh, de O Animal Agonizante, os personagens mais marcantes de Roth costumam ser péssimos exemplos de conduta, e não ajuda imaginar que os piores aspectos de suas personalidades podem ter sido inspirados por traços do próprio autor.
Roth foi um dos primeiros escritores a abordar o denuncismo que tomou conta das universidades americanas no final dos anos 1990 – espécie de prefácio para o que vivemos hoje, em grande escala, nas redes sociais. Não espanta que esse fosse um tema sensível para um autor que, desde os primeiros livros, aprendeu a conviver com diferentes tipos de patrulha ideológica. No romance A Marca Humana (2000), escrito no clima do escândalo sexual que envolveu o presidente Clinton e uma estagiária, imaginou um professor universitário que cai em desgraça em função de um comentário considerado racista.
Desonra, de J. M. Coetzee, lançado um pouco antes, conta uma história muito parecida. De lá para cá, banalizaram-se as denúncias e os linchamentos morais, que agora atingem não apenas comportamentos públicos, mas as trapalhadas, nem sempre tão graves, da vida privada dos artistas e a própria arte – que, não custa lembrar, não é a realidade, mas sua representação, embora muita gente ainda pareça ter alguma dificuldade para distinguir uma coisa da outra.
Assusta imaginar que um escritor como Philip Roth talvez tivesse dificuldade para publicar o primeiro livro nos dias de hoje. Nos anos 1960, ele foi acusado de antissemitismo – mesmo sendo judeu. Nos últimos tempos, foi chamado de misógino porque suas personagens femininas não tinham a profundidade dos seus melhores cafajestes – ao que ele costumava responder dizendo que isso poderia fazer dele um mau escritor, mas não um homem que odiava as mulheres.
O Nobel o esnobou, e em 2011, quando ganhou o Man Booker International Prize, uma jurada descontente o acusou de escrever sempre sobre as mesmas coisas. O fato é que Roth soube retratar as pessoas como elas são – falhas, absurdas, incoerentes, mesquinhas. Esse talento não faz de ninguém um exemplo de caráter, mas fez de Roth um dos maiores escritores da nossa época. E das próximas.
Por Cláudia Laitano | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
Receba a nossa newsletter
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.