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Domingo, Setembro 1, 2024

A poesia vence as ruínas do medo

Christiane Brito, em São Paulo
Christiane Brito, em São Paulo
Jornalista, escritora e eterna militante pelos direitos humanos; criou a “Biografia do Idoso” contra o ageísmo.  É adepta do Hip-Hop (Rap) como legítima e uma das mais belas expressões culturais da resistência dos povos.

O tempo voou.

Conheci Toni C., Sabotage e o Hip-Hop, apaziguei.

Reassumi lugar em uma trincheira familiar, a da luta pelas liberdades democráticas. E tive o prazer – indescritível – de conhecer a poesia dos saraus de periferia. Resistência sem medo: “Rap é compromisso”.

No dia 17 de abril de 2016, fui a um lançamento de livro da jornalista Ana Helena Tavares sobre o “medo”, no Sindicato dos Jornalistas. Coincidentemente, Audálio Dantas estava presente, compondo a mesa de debatedores, ao lado de José Genoíno, ex-presidente do PT.

Genoíno afirmou naquela noite:

“O que o Brasil está vivendo, hoje, é uma crise de identidade”.

Então é isso, pensei tardiamente, a minha crise no passado recente era – também – da ordem política e social. Tinha origem no que se revelou esse golpe que enfrentamos hoje.

Então só nos resta a luta, ao lado dos iguais e diferentes de mesma índole, mas sem aderir a sensacionalismo da mídia, ao oportunismo de campanhas políticas (temos eleições em outubro) ou a interesses pessoais em detrimento dos compromissos de cidadão: a hora é gravíssima!

Transcrevo, a seguir, trechos da matéria publicada em novembro de 2012 no Portal Vermelho, onde revelo as perguntas que fiz e respostas que obtive do Audálio quando o procurei.

Aos eventuais leitores, peço o favor de não estranharem o verbo usado no tempo presente. Reportei a cena como se passou, ou do modo como penso que se passou. Toda verdade, especialmente do jornalista, é muito relativa, já se sabe:

“Audálio chegou apressado ao café em que eu o entrevistaria, tinha uma reunião logo depois e um texto para escrever. Fiquei constrangida, precisava ser objetiva e rápida, ir ao assunto sem aquecimento. E foi o que fiz, desajeitada, tentando seguir direto ao tema que, na época, me inquietava:

– Você viveu o jornalismo nos tempos da ditadura, havia…

Ele não me deixou concluir:

– Medo…

Pensei que sim, medo da morte, tortura, ameaças reais…

– Pois é, e, no entanto, as pessoas expunham suas convicções, escreviam, manifestavam-se contra a censura e a violência. Qual é o medo hoje?

– De perder o emprego.

– Mas então esse medo é…

– Institucional?

Não, não pensara nisso. Mas achei a resposta boa, por um lado. Por outro, se o medo no Brasil é uma instituição, só poderá ser abalado quando o país estiver abalado em seus alicerces institucionais, o que não é o caso hoje.

Demos continuidade a algo que nem era entrevista nem conversa nem nada. Audálio aproveitou para falar da Comissão da Verdade, ele acredita que irá estimular mais matérias reveladoras de episódios encobertos pela censura.

Questiono: “Mas o braço de ferro com o grupo de resistência à abertura dos documentos da ditadura continuará grande, não é?”

Ele concorda e pega outra fatia de pão no seu prato, se justifica: “Estou com mais fome do que pensei”.

E eu também, pensei. Conto que (…) uma amiga havia feito um documentário chamado: “O Brasil deu certo: e agora?”. Questiono:

– O Brasil deu certo?

– Ainda não!

Faço referência às greves, reivindicações de categorias, ele rebate:

– Tenho ressalvas com relação às greves que estamos assistindo, são de servidores públicos, mas não vou entrar nesse assunto, é longo.

 

Manual de redação: é proibido questionar

E a minha cabeça volta ao medo, o medo de perder o emprego que faz o jornalismo perder sua identidade — a reportagem — e, assim, sua voz de denúncia, porque, se comunicação é negócio — e isso não se discute, já havia me alertado Audálio logo no início da conversa – o jornalismo sob o ponto de vista da profissão, não é. E concordamos aqui, Audálio e eu, que não há contradição no fato.

Reiteradas vezes, Audálio afirma que o repórter busca a verdade, escorregadia, difícil, mas é na direção desse peixão que deve ser jogada a nossa isca de perguntador. Para ele, o futuro do jornalismo impresso está na reportagem.

Concordo. Mas onde está o repórter na cena atual do jornalismo? Procuro na redação e não encontro.

Audálio o identifica na literatura. Afirma que reportagem tornou-se objeto do jornalismo literário. No caso dele, a julgar pela obra recentemente lançada “Tempo de Reportagem”, pela editora Leya, seus textos só podem mesmo ir parar nos livros, descrevendo personagens do povo, histórias inusitadas, comunidades longínquas com requintes de detalhes que transportam leitores à cena e ao desconsolo.

Carolina Maria de Jesus, Audálio Dantas e Ruth de Souza na Favela do Canindé
Carolina Maria de Jesus, Audálio Dantas e Ruth de Souza na Favela do Canindé

É um bilhete de ida a Brasis atemporais, que foram reconstituídos, primeiramente, em páginas de revistas como Cruzeiro ou Realidade, mas figuram hoje em obra atual, reveladora. São 13 registros pinçados por Audálio de um longo trabalho na imprensa na condição de repórter, daquele tipo que, como se diz no jargão do ofício, não pode ter medo de gastar as solas dos sapatos, pois é nas ruas que estão as boas histórias e não no ar condicionado das redações.

 

A segunda guerra de Vlado

Agora temos novo livro de Audálio (já tem 11 outros títulos no mercado), As duas guerras de Vlado Herzog* (Editora Civilização Brasileira), outro gênero, ainda assim reportagem. Narra sob um ponto de vista privilegiado, o de um protagonista, a história do sequestro e morte de Herzog, expondo fatos sob todos os ângulos, apresentando os personagens envolvidos, as manifestações e desdobramentos que envolveram o assassinato do jornalista nas dependências do Doi-Codi de São Paulo, em 1975.

Eram tempos de força bruta contra réus não julgados, sadismo voraz que não poupava nem altas patentes de ameaças descabidas, “fardas contra fardas” e busca da justiça inalcançável. Há testemunhos de murros na mesa de Geisel, presidente do país na época, indignado com a violência gratuita.

Audálio Dantas, Jornalista e escritor, autor do livro ‘As duas guerras de Vlado Herzog’
Audálio Dantas, Jornalista e escritor, autor do livro ‘As duas guerras de Vlado Herzog’

Reagiu irado como tantos militares e até governadores, como Paulo Egydio de Moraes, uma das primeiras autoridades a se dispor a depor, agora, na Comissão da Verdade.

Geisel, Paulo Egydio, até mesmo Golbery, assistiram à caça sangrenta ao chamado “fascismo vermelho comunista” (e nem mesmo os não comunistas ou não militantes escaparam dos sequestros, porque o serviço de informações do Exército levianamente concluía que havia ativismo sem apurar fatos, torturando e matando inocentes, como descreve Audálio Dantas em seu livro).

Dantas, como presidente do Sindicato dos Jornalistas quando Vlado foi assassinado, conseguiu controlar ânimos alterados, organizar a luta do povo em torno de objetivos construtivos e alentadores, sensibilizou aliados de peso e, mais que tudo, potencializou a solidariedade nascente — o combustível que fortaleceu a luta, que resgatou dissidentes, que acalmou exaltados e acolheu diferenças.

Audálio não se ufana, conta que tinha medo, mas estava em um papel estratégico e cumpriu-o como era seu dever, diz que o avanço nas reivindicações sociais foi uma conquista cívica, não aceita nem o papel de condutor do processo. Certamente o episódio Vlado rendeu efeitos colaterais que os carniceiros do Doi-Codi não esperavam: reanimou a desmaiada democracia, restabeleceu a força de altas patentes das Forças Armadas, como o próprio General Geisel, no comprometimento com a “distensão”, e pavimentou o caminho para que Figueiredo, o último presidente da era militar, finalmente concretizasse a “abertura”.

Elis Regina
Elis Regina

No livro de Audálio, já lançado em São Paulo e Porto Alegre, o autor dá o nome de todos que sofreram, lutaram, partiram num “rabo de foguete”, como cantou Elis Regina no hino dos exilados, que, afinal, se referia a todos que viveram a ditadura, exilados em terra pátria, abandonados à própria sorte, despojados de sonhos e ideais, indefensáveis até mesmo por autoridades que discordavam da tortura e do medo. Outra vez o medo, “a mais triste das paixões tristes”, segundo Spinoza.

Audálio também sentiu e conhece o medo, mas soube esgrima-lo com altivez e bom senso, venceu-o no enfrentamento da morte de Herzog. É exemplo de líder, ser humano e escritor; ou devo nomeá-lo, especialmente aqui, “repórter”?

Não é qualquer escritor que se esmera em basear descrições nos fatos e datas precisos, que reconstitui embates temperando angústia e suspense em um clímax que eletriza o leitor, apesar de todo mundo conhecer o final da história.

É um reviver para tantos, uma descoberta para outros tantos, um encontro de todos com a realidade de um tempo que até hoje impregna nosso presente e futuro. O passado ainda não foi exorcizado, seus efeitos seguem. Tomara sirvam de pedestal para a verdade que nossos governos e os “porões” da ignomínia nos devem há décadas.

*As duas guerras de Vlado Herzog, Audálio Dantas, Civilização Brasileira, 2012

Nota: a autora escreve em português do Brasil

Nota da Edição: Na página referenciada, leia “Mostrar Mais”

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