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Sábado, Dezembro 21, 2024

Policrítica na Hora dos Chacais: o poema de Cortázar em defesa de Cuba

Julio Cortázar (1914-1984) é um dos mais importantes escritores argentinos do século 20. Especialmente por seus contos e narrativas curtas, é reconhecido como um mestre da corrente do realismo fantástico. Notabilizou-se, também, por seu engajamento político e sua defesa das causas sociais. Nesta semana, publicamos uma tradução inédita de uma de suas obras mais interessantes e complexas – o poema Policrítica na Hora dos Chacais.Nesse poema-ensaio – ou poema-intervenção –, publicado inicialmente em 1971 na Revista Casa de las Américas, de Havana (Cuba), Cortázar ambiciona uma “crítica política em que o grito está, como um pulmão que respira”. Com ele, o autor argentino participa do debate relacionado ao famoso “Caso Padilha”, que, em 1971, mobilizou inúmeros escritores a se posicionarem sobre o papel do intelectual no contexto revolucionário. Contra a corrente dominante, Cortázar toma partido da Revolução Cubana, em um poema que articula energia política, beleza cortante, retórica aguerrida e problematização da linguagem.

Repare o leitor no uso muito ácido da ironia que se dirige aos intelectuais e jornalistas que deformam a história a favor de seus interesses de classe. O que Cortázar problematiza nesse longo poema é algo extremamente atual: que papel têm os escritores em relação à conjuntura política? Qual a sua tarefa? O que podem fazer? Quem são os chacais da hora?

O poeta e tradutor Alexandre Pilati é quem assina esta versão em português de Policrítica na Hora dos Chacais. Professor de Literatura da Universidade Brasília (UNB). Confira sua tradução de mais um poema de Cortázar.

Policrítica na Hora dos Chacais

por Julio Cortázar

Pra que serve escrever boa prosa,
de que serve indicar razões e argumentos
se os chacais vigiam, o rebanho é lançado contra o verbo,
eles o mutilam, pegam o que querem, deixam de lado o resto,
eles tornam o preto branco, o sinal de mais vira sinal de menos,
os chacais são sábios nos telexes,
eles são a tesoura da infâmia e do mal-entendido,
matilha universal, branco, preto, albino,
são lacaios se não assinam e extremamente chacais quando assinam,
de que serve escrever medindo cada frase,
qual é a utilidade de pesar cada ação, cada gesto que expliquem a conduta
se no dia seguinte os jornais, os conselheiros, as agências,
os policiais disfarçados,
os conselheiros do gorila, os advogados dos trustes
se encarregarão da versão mais adequada para o consumo dos inocentes ou crápulas,
fabricarão mais uma vez a mentira que corre, a dúvida que se instala,
e tantas pessoas boas em tanta cidade e tanto campo de tanta terra nossa,
que abre seu jornal e busca a verdade e se encontra
com a mentira maquiada, o repasto pronto, e vai engolindo
lodo pré-fabricado, merda em colunas limpas, e alguns acreditam
e ao acreditar esquecem o resto, tantos anos de amor e combate,
porque é assim que é, compadre, os chacais sabem: a memória é falível
e como nos contratos, como nos testamentos, o jornal de hoje com suas notícias invalida
tudo que o precede, afunda o passado no lixo de um presente traficado e mentiroso.

Então não, melhor ser o que se é,
dizer isso que queima a língua e o estômago, sempre haverá quem entenda
esta linguagem que vem do fundo,
como do fundo brotam o sêmen, o leite, as espigas.
E para quem espera outra coisa, a defesa ou a boa explicação,
a recidiva ou a fuga, nada mais fácil do que comprar o jornal made in EUA
e ler os comentários a este texto, as versões da Reuters ou da UPI
onde sábios chacais lhe darão a versão satisfatória,
onde colunistas mexicanos ou brasileiros ou argentinos
traduzirão, com tanta generosidade,
as instruções do chacal com base em Washington,
eles vão traduzi-las para o espanhol correto, misturado com saliva nacional,
com merda autóctone, fácil de engolir.

Eu não peço desculpas por nada, e sobretudo
eu não perdoo esta linguagem,
é a hora do chacal, dos chacais e seus lacaios:
eu os mando à puta que pariu,
e digo o que vivo e o que sinto e o que sofro e o que espero.

Explicação do título: falando dos complexos problemas cubanos, um amigo francês misturou os termos crítico e político, inventando a palavra “policritique“. Ao ouvi-lo, pensei (também em francês) que entre pol tique a sílaba colocada era cri, isto é, grito. Grito político, crítica política em que o grito está, como um pulmão que respira; assim eu sempre entendi, assim vou continuar a sentir e a dizer. Hoje você tem que gritar uma política crítica, você tem que criticar gritando cada vez que acha que é justo: só assim podemos um dia exterminar os chacais e as hienas.

Diariamente, na minha mesa, os recortes da imprensa: Paris, Londres,
Nova Iorque, Buenos Aires, Cidade do México, Rio de Janeiro. Diariamente
(em pouco tempo, apenas duas semanas) a máquina montada,
a operação realizada, os liberais encantados, os revolucionários confusos,
a violação em letras impressas, os comentários compungidos,
aliança entre chacais e santos, o rebanho feliz, tudo está bem.
Custa-me usar essa primeira pessoa do singular, e mais me custa
dizer: isso é verdade ou é mentira. Todo escritor, Narciso, se masturba
defendendo seu nome, o Ocidente
encheu-o de orgulho solitário, quem sou eu
diante dos povos que lutam por sal e vida,
que direito tenho de preencher ainda mais páginas com negações e opiniões pessoais?
Se eu falo de mim mesmo é que talvez, companheiro,
quando essas linhas te encontrarem,
vais me ajudar, eu vou te ajudar a matar os chacais,
vamos ver melhor o horizonte, mais verde o mar e mais seguro o homem.
Falo para todos os meus irmãos, mas dirijo-me a Cuba,
não conheço melhor maneira de abraçar a América Latina.
Eu compreendo Cuba como só se compreende o ser amado,
os gestos, as distâncias e as muitas diferenças,
a raiva, o grito: acima de tudo o sol, a liberdade.
E tudo começa pelo contrário, por um poeta aprisionado,
pela necessidade de entender por que, de perguntar e de esperar,
o que sabemos aqui do que está acontecendo, tantos de nós que somos Cuba,
tantos que diariamente resistimos à aluvião e ao vômito de boas consciências,
dos desencantados, daqueles que vêm mudar esse modelo
que imaginaram por sua própria conta e em suas casas, para dormir calmamente
sem fazer nada, sem olhar de perto, a lua de mel barata com sua ilha paraíso
longínqua o bastante para ser realmente o paraíso
e de repente descobrem que seu lindo céu cai sobre sua cabeça.
Estás certo, Fidel: só na luta existe o direito à insatisfação.
Só de dentro deve sair a crítica, a busca por fórmulas melhores,
sim, mas por dentro é tão fora às vezes,
e se hoje eu me afasto para sempre do liberal para a violeta, dos que assinam os virtuosos textos
por-que-Cu-ba-não-é-isso-que-e-xi-gem-seus-es-que-mas-de-pa-pel,
não me acho uma exceção, eu sou como eles, o que eu tenho feito por Cuba além do amor
o que teria dado por Cuba além de um desejo, uma esperança.
Mas agora eu me afasto do seu mundo ideal, dos seus esquemas,
precisamente agora quando
me cerram a porta do que eu amo, e me é proibido defendê-lo,
é agora que exerço meu direito de escolher, de estar mais uma vez e mais do que nunca
com tua Revolução, minha Cuba, do meu jeito. E meu jeito estranho, aos tropeços
é este, é repetir o que eu amo ou não amo,
aceitando a reprovação de falar de tão longe
e também insistindo (quantas vezes eu fiz isso para o vento)
que eu sou o que sou, e nada sou, e este nada é minha terra americana,
e como eu possa e onde esteja sigo sendo esta terra, e por seus homens
escrevo cada letra de meus livros e vivo todos os dias da minha vida.

Comentário dos chacais (via México, reproduzidos com alvoroço no Rio de Janeiro e Buenos Aires): “O agora francês Julio Cortázar … etc.”. Mais uma vez o ufanismo de escarapela, confortável e rendido, mais uma vez a saliva dos ressentidos, de tantos que permanecem em seus poços sem fazer nada, sem ser ouvidos mais do que em suas casas no momento do bife; como se em algo eu deixasse de ser latino-americano, como se uma mudança no passaporte (e nem mesmo é isso, mas não vamos nos dedicar a explicar, o chacal se chuta e apenas isso) fosse modificar o meu coração, fosse mudar meu comportamento, fosse mudar o meu caminhar. É muito repugnante continuar com isso; meu país é outra coisa, nacionalista infeliz; eu limpo o ranho com sua bandeira de pacotilha, onde quer que você esteja. A revolução também é outra coisa; ao fim, muito distante, talvez infinitamente distante, há uma magnífica queima de bandeiras, um incêndio dos trapos manchados por todas as mentiras e pelo sangue da história dos chacais e dos ressentidos e dos medíocres e dos burocratas e dos gorilas e dos lacaios.

É isso aí, companheiros, se me ouvem em Havana, em qualquer parte,
tem coisas que eu não engulo
tem coisas que eu não posso engolir em uma marcha em direção à luz,
ninguém conquista a luz deixando de iluminar os fantasmas podres do passado,
se os preconceitos, os tabus do macho e do feminino
seguem em suas maletas,
e se um vocabulário de casuístas quando não de energúmenos
arma a burocracia da linguagem e os cérebros, condiciona os povos
que Marx e Lenin sonharam livres por dentro e por fora,
na carne e na consciência e no amor,
na alegria e no trabalho.
Por isso, companheiros, sei que posso lhes dizer
o que eu acredito e o que não acredito, o que aceito e o que não aceito,
esta é a minha policrítica, minha ferramenta de luz,
e em Cuba eu sei dessa luta contra tantos inimigos,
sei dessa ilha de homens inteiros que nunca esquecerão o riso e a ternura,
que irão defendê-los enamoradamente,
que cantam e bebem entre os turnos da luta, que fazem a guarda fumando,
que são os que Martí procurou, os que assinaram com seu sangue tantos mortos
na hora de cair frente a chacais de dentro e a chacais de fora.
Não serei eu a proclamar ao delator divino a coragem de Cuba e seu combate;
há sempre alguma hiena maquiada de juiz, poeta ou crítico,
pronta para cantar loas ao que odeia no fundo de suas entranhas,
pronta para sufocar a voz daqueles que querem um verdadeiro diálogo, o contato
de alto a baixo: o contato com esse homem que comanda o perigo porque o povo
conta com ele e sabe
que aí está porque é justo, porque nele se define
a razão da luta, do duro caminho,
porque fez sua vida com Camilo e o Che e tantos que povoam
de ossos e lembranças a terra da palma;
e também em contato
com o outro, o simples camarada que precisa da palavra e do rumo
para melhor conduzir a máquina, para melhor cortar a cana.

Ninguém espere de mim o elogio fácil,
mas hoje é mais do que nunca tempo de decisão e águas claras:
diálogo peço, encontro nas borrascas, policríticas diárias,
não aceito a repetição de humilhações torpes,
não aceito confissões que chegam sempre tarde demais,
não aceito risadas dos fariseus convencidos de que tudo vai bem depois de cada exemplo,
não aceito a intimidação nem a vergonha. E é por isso que aceito
a crítica real, aquela que vem daquele que segura o leme,
daqueles que lutam por uma causa justa, lá ou aqui, no alto ou no chão,
e reconheço a torpeza de querer saber tudo de uma mera escrivaninha
e humildemente busco a verdade nos acontecimentos de ontem e de amanhã
e busco teu rosto, Cuba tão querida, e eu sou aquele que foi a ti
como se vai beber água, com a sede que será fragmento ou canção.
Revolução feita de homens
cheia estarás de erros e desvios, cheia estarás de lágrimas e ausências,
mas a mim, aos que em tantos em horizontes somos pedaços de América Latina,
tu nos entenderás ao fim do dia,
nos encontraremos novamente, para ficarmos juntos, porra,
contra hienas e porcos e chacais de qualquer meridiano,
contra fracos e frouxos e escribas e lacaios
em Paris, em Havana ou Buenos Aires,
contra o pior que dorme no melhor, contra o perigo
de ficar parado no meio da estrada, de não cortar os nós
a facadas limpas,
e eu sei que um dia nos veremos novamente
bom dia, Fidel, bom dia, Haydée, bom dia minha Casa,
meu lugar de amigos e ruas, meu garotinho, meu amor,
meu pequeno jacaré ferido e mais vivo do que nunca,
eu sou esta palavra de mãos dadas como outros são teus olhos ou teus músculos
todos juntos iremos para a futura colheita,
para o açúcar de um tempo sem impérios ou escravos.

Vamos conversar, é sobre homens: no começo
foi o diálogo. Deixe-me defender-te
quando vier o chacal da vez, deixe-me estar lá. E se não for o que queres
olha, compadre, esquece tanta crise barata. Comecemos de novo,
diga lá, aqui estou, aqui te espero; pega, fuma comigo,
longo é o dia, a fumaça afugenta os mosquitos. Tu sabes,
eu nunca estive tão perto
como agora, de longe, contra todas as probabilidades. O dia nasce.


A tradução de português do Brasil é do poeta Alexandre Pilati, professor de Literatura da Universidade Brasília (UNB)

Exclusivo Editorial PV (Fonte: Fundação Perseu Abramo) / Tornado


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