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João de Sousa

Domingo, Julho 28, 2024

Populismo e reforma política em Portugal

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Depois de terminar 2017 da melhor forma – com a retumbante vitória de Mário Centeno no plano financeiro europeu que tanto indispôs o nosso Presidente da República – o Governo e o partido sobre o qual ele se apoia parecem concentrar-se na maneira de como destruir aquilo que conseguiram o ano passado.Um mês depois do texto orçamental estar votado, descobriu a opinião pública, e aparentemente descobriram também os próprios actores políticos, que os peixinhos de aquário passavam a pagar €50 de imposto anual. O problema não é fundamentalmente o absurdo da medida, é o facto de o sistema político democrático (e incluindo aqui o chamado quarto poder que deveria servir exactamente para trazer a lume este tipo de medidas) se mostrar incapaz de permitir o verdadeiro escrutínio democrático das medidas que nos condicionam.

O principal problema é que o cidadão se sente como um peixinho vermelho indefeso perante uma máquina de extorsão pública que era suposto ser controlada pelo cidadão, através dos nossos eleitos, mas não é.

Vejamos o meu último exemplo pessoal do que é a total ausência de escrúpulos como o fisco lida com o cidadão. No final de Agosto de 2015 aluguei um automóvel no aeroporto do Porto, que viria a entregar dias depois no aeroporto em Lisboa. Fiz com ele vários trajectos submetidos a portagem, mas por qualquer razão, a portagem de 20 cêntimos que está à saída do aeroporto do Porto em direcção a Matosinhos terá ficado por pagar. Provavelmente, penso agora, dois anos depois, porque o dispositivo de pagamento automático da viatura levou alguns minutos antes de estar operacional.

Em Novembro de 2017, com data de Outubro de 2017, o fisco intima-me a pagar €74,59 sob pena de penhora da casa de Olhão de que sou co-herdeiro. Vou a uma repartição de finanças onde sou pela primeira vez informado do que se trata. Peço prova de que alguma vez antes fui notificado de que tinha 20 cêntimos em dívida ao sistema de autoestradas. Respondem-me que não têm e não me dão qualquer forma de a obter. A alternativa é ou pagar os €74,59 ou submeter-me a um dos tradicionais processos à portuguesa que infelizmente já conheço, em que se é condenado a pagar em Tribunal sem qualquer prova, sem poder falar, sem qualquer justificação, numa completa farsa do que é suposto ser um Estado de Direito.

A total ausência de garantias de defesa em processos que envolvem as empresas rentistas como as das autoestradas ou das telecomunicações e em que o Estado (tanto o fisco como os tribunais) usa de poderes tirânicos para expropriar o cidadão é a negação dos elementares direitos democráticos e a redução do cidadão à condição de peixe vermelho num aquário.

Opinião pública, cá dentro e lá fora

Foi também a opinião pública submergida por uma onda de indignação por uma lei do funcionamento dos partidos do qual pouco de objectivo foi discutido. De seguro, ficou a ideia de que os partidos se decidiram auto-aumentar de subvenções e auto-isentar de impostos, em reuniões secretas não documentadas.

Nestas condições, como querem os nossos ilustres representantes que os portugueses olhem para o que foi decidido? As acusações de populismo com que foram brindados os críticos a essa lei são a confissão da incapacidade de se entender o populismo que supostamente se denuncia.

Desde 2014 que o mundo está a ser confrontado com uma vaga de ‘populismo’, expressão complexa, mal estudada pela ciência política, e que cobre um leque muito variado de formas de rejeição do que são as normas políticas estabelecidas, desde as do funcionamento do sistema político-partidário, ao judicial ou mesmo às do poder da imprensa.

O fenómeno não é novo, e teve um dos seus mais importantes episódios na primeira metade do século XIX, com o mandato do presidente norte-americano Andrew Jackson (1829-1837), talvez o mais importante para entendermos o actual Presidente Donald Trump.

Populismo, lá fora e cá dentro

O populismo pode ser uma fase transitória e demagógica num sistema democrático (como aconteceu nos EUA) ou pode ser um golpe fatal em incipientes realidades democráticas e antecâmara de tiranias, como aconteceu com o Nazismo ou com o Sovietismo.

No panorama actual temos um sem-fim de formas diversas de populismo, desde as justiceiras (apelo à execução sumária de traficantes de droga nas Filipinas) às nacionalistas (não aos refugiados na UE a Leste) às mais famosas de Donald Trump e a outro exemplo mais perto de nós que tem no entanto merecido escassa atenção: o de Emmanuel Macron. Trump e Macron representam ambos um corte populista com as instituições políticas tradicionais dos seus países, mas fora isso, as diferenças entre eles são grandes.

Emmanuel Macron é oriundo de uma família da ‘aristocracia do saber’ e não da ‘oligarquia do dinheiro’ como Donald Trump. O seu percurso profissional é o da sua cooptação pela oligarquia francesa dos negócios, o que não acontece com Donald Trump, que permaneceu na esfera da construção e imobiliário, à margem dos grandes meios económicos e financeiros americanos.

Enquanto Donald Trump desafiou a comunicação social – e o que teve de mais notável foi ter conseguido ser eleito contra a quase totalidade do poder mediático americano – Emmanuel Macron foi levado ao colo por toda a comunicação social francesa. Por outro lado, Donald Trump tendo tido a oposição quase generalizada da classe política americana (incluindo a republicana) não quebrou com o sistema político-partidário do seu país, enquanto Emmanuel Macron fez isso mesmo: declarou os partidos políticos ou o próprio jogo parlamentar entre a esquerda e a direita como obsoletos, e arrasou-os.

Por outras palavras, quando o PS acusa os críticos da lei de financiamento dos partidos de ser ‘populistas’ o partido está-lhes a fazer um inestimável favor, está a dizer-lhes que eles estão com os tempos que correm. Pior do que isso, ao deixar que o PSD se eclipse nessa operação (o recém nomeado líder da bancada será o conveniente bode expiatório), o partido está a oferecer-se para ser o bombo da festa da insatisfação popular.

Não é difícil de entender que o nosso presidente olha atentamente para o modelo populista de Macron, que Santana Lopes o faz também certamente (um partido dirigido por ele é mais uma associação que um partido) e que ambos ficam esfusiantes de alegria com esta promoção das suas credenciais ‘populares’.

Mas como se não tivessem feito já disparates suficientes em tão pouco tempo, resolveu a direcção parlamentar socialista atacar o próprio Primeiro-ministro em matéria de lei de alojamento local, propondo uma lei que condicionaria a actividade ao acordo de todos os condóminos, medida persecutória de uma das mais importantes actividades que retirou a economia portuguesa do marasmo, posição que felizmente, como se pode ler na imprensa, levantou grandes objecções entre os socialistas.

O populismo é a onda do momento. Para lhe fazer face, ou o Governo consegue ser ainda mais populista (o que me parece inexequível) ou consegue contrapor uma alternativa credível que trate seriamente dos principais problemas com que nos confrontamos, o que não se vê acontecer.

Aquilo que se tem feito em Portugal com igrejas, associações de solidariedade social e partidos políticos, que é a de lhes entregar subvenções que cubram o impacto do IVA no que gastam, é algo que uma alternativa cidadã deveria terminar, e não alargar, como agora se fez. Porque razão o que uma família gasta para alimentar os seus filhos paga IVA e o dinheiro da despesa das igrejas, partidos e algumas associações não?

Posto isto, em vez de defender o indefensável, a única estratégia possível de alternativa ao populismo é o de entender os profundos défices democráticos com que a nossa cidadania continua a estar condicionada e de responder aos anseios dos cidadãos.

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