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Sábado, Dezembro 21, 2024

Por que a violência no campo é mais cruel com as mulheres?

Marcos Aurélio Ruy, em São Paulo
Marcos Aurélio Ruy, em São Paulo
Jornalista, assessor do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo

Dando continuidade às reportagens em comemoração aos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher, nesta edição é abordada a violência contra as mulheres do campo para entender a sensação de abandono pelo Estado vivenciado pelas trabalhadoras rurais, principalmente,  nos últimos três anos.

“Durante os governos progressistas sentíamos que tínhamos a possibilidade de enfrentar com apoio do Estado a violência que nos acometia, mas agora a situação degringolou e o retrocesso tem sido imenso e intenso”, afirma Maria Aires Oliveira Nascimento, secretária-adjunta da Mulher Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

“Sem mecanismos de defesa, fica difícil até de denunciar a violência”, complementa Aires que também é secretária das Mulheres Trabalhadoras Rurais da Federação dos Trabalhadores/as na Agricultura do Estado de Sergipe.

O relatório Conflitos no Campo Brasil 2018, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da igreja católica, mostra uma diferença substancial entre a violência contra homens e mulheres do campo. “O que chamou muita atenção é o grau de crueldade. Não só os números de assassinatos e a violência, mas parece que quando agridem a mulher é muito mais cruel”, diz Jeane Bellini, da coordenação nacional da CPT.

 

Assista Sozinhas a História de Mulheres que Sofrem Violência no Campo

(Reportagem de Ângela Bastos, imagens: de Felipe Carneiro e edição de imagens: Chico Duarte)

De acordo com ela, as cerca de 15 milhões de mulheres (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), que trabalham e vivem no campo, enfrentam restrições maiores do que os homens no acesso à água, à titulação das terras, ao crédito rural, à assistência técnica, à compra de sementes e até na comercialização de seus produtos.

O estudo da CPT mostra que em 2018, duas mulheres foram assassinadas em decorrência de conflitos agrários, 36 receberam ameaças de morte, seis sofreram tentativas de assassinato, duas foram torturadas e 400 foram detidas apenas por defenderem seus direitos, num total de 482 vítimas de violência que registraram denúncia.

Mas a violência vai além. “sofremos maiores discriminações no acesso à terra, no mercado de trabalho e pela dupla jornada de trabalho. A mulher sindicalista e ativista sofre ainda mais violência de diversas maneiras pela ousadia de lutar”, acrescenta Vânia Marques Pinto, secretária de Políticas Sociais da CTB.

Com a vigência das políticas públicas, as vítimas já enfrentavam inúmeras dificuldades para denunciarem o agressor. “Sem mecanismos de punição e atendimento para as agredidas, torna-se muito mais difícil convencer as vítimas a denunciarem e com a impunidade, a violência tende a crescer”, diz.

Para ela, “no campo faltam espaços para assistência às vítimas de violência, como as delegacias da mulher, pois mesmo com a Lei Maria da Penha, o atendimento nas delegacias comuns desencorajam as denúncias pelo constrangimento a que as violentadas passam ao serem atendidas por homens.”

Já Mazé Morais, secretária de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e coordenadora da Marcha das Margaridas 2019, “particularmente, as mulheres do campo, da floresta e das águas, além de expostas à violência física, enfrentam uma série de violências simbólicas e materiais, como a invisibilidade e desconsideração de suas contribuições econômicas.”

 

Vídeo da Marcha das Margaridas 2019

Ela reforça também que as mulheres do campo “são sempre as mais afetadas pelo aumento da pobreza e extrema pobreza rural. Mesmo constituindo importante parte da força de trabalho das famílias e responsáveis por produzir parte significativa dos alimentos que a sociedade consome.”

O relatório Conflitos no Campo Brasil 2018 mostra ainda que de 2009 a 2018, 1.409 mulheres notificaram algum tipo de violência no meio rural, mas esse número, segundo a CPT, pode ser bem maior devido à subnotificação. Nesse período, 38 mulheres foram assassinadas, 409 receberam ameaças de morte, 22 morreram em consequência de conflitos, 111 foram presas e 37 foram estupradas.

A situação vem piorando nos últimos três anos, diz Vânia. “Depois que tiraram a Dilma, as políticas públicas em favor dos direitos da mulher começaram a ser extintas e as mulheres sentem-se largadas à própria sorte, já que inclusive a agricultura familiar sofre com o descaso dos governantes neoliberais.”

Aires concorda com ela e afirma que o presidente Jair Bolsonaro favorece os grandes produtores em detrimento da agricultura familiar e dos pequenos agricultores. “O governo liberas agrotóxicos indiscriminadamente, favorece a incursão de queimadas ao mesmo tempo em que corta verbas para a agricultura familiar, que é quem produz alimentos saudáveis para a mesa dos brasileiros”, acentua.

 

A mulher é o negro do mundo

Apesar de algumas dificuldades maiores enfrentadas pelas mulheres do campo, “a mulher é o negro do mundo”, como dizem John Lennon e Yoko Ono na canção homônima. A violência as atinge indiscriminadamente, principalmente porque quando se violenta o corpo e a alma feminina se atinge a todas as mulheres. Abaixo trecho da música:

“A mulher é o negro do mundo
Sim, ela é,
Pense a respeito
A mulher é o negro do mundo
Pense a respeito…
Faça algo contra isso”

“O crescimento da violência contra as mulheres denuncia que vivemos numa sociedade doente. Os homens têm medo da mulher livre e atuante em defesa de sua vida e seus direitos”, diz Celina Arêas, secretária da Mulher Trabalhadora da CTB.

Uma pesquisa feita pelo Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), comprova a afirmação de Celina. O levantamento aponta que 536 mulheres foram agredidas fisicamente a cada hora com socos, empurrões ou chutes, em 2018. E não foi no Oriente Médio, na África (locais mais violentos contra as mulheres) e sim no Brasil, onde 177 mulheres foram espancadas a cada hora no ano passado. Sendo que 52% das vítimas não denunciou o algoz.

 

Ouça Woman Is the Nigger of the World, de John Lennon e Yoko Ono

“Atualmente ocorrem retrocessos inclusive no ato de fazer a denúncia”, assinala Celina, porque “o Estado machista não encoraja as vítimas a procurarem seus direitos e a mídia comercial naturaliza a violência como se fosse normal homem bater em mulher.”

Números da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) denunciam o crescimento de feminicídios. Somente em fevereiro deste ano 126 mulheres no Brasil e outras tentativas de assassinato. Segundo o FBSP, 16 milhões de mulheres foram agredidas no Brasil em 2018, ou 1.830 por hora. Pasmem. Ainda, de acordo com a ONG, o número de feminicídios cresceu 12% em relação a 2017.

“É preciso atuar sobre as causas e os fatores da violência contra a mulher, impedindo que isso aconteça. É urgente garantir ações e investimentos em prevenção da violência de gênero e para a desconstrução do machismo”, complementa Ana Carolina Querino, representante interina da Organização das Nações Unidas Mulheres Brasil.

Além disso, “precisamos de políticas públicas que colaborem para a autonomia econômica com acesso à terra, ao crédito e à assistência técnica”, argumenta Vânia. E ainda ampliar “o acesso à educação e criar mecanismos de defesa e empoderamento às vítimas de abuso.”

Ela lembra do assassinato da vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018 e até hoje os responsáveis por esse feminicídio político não estão presos e sendo julgados como determina a lei.

Em todo o mundo as mulheres sofrem discriminação. O assédio moral e o assédio sexual são práticas recorrentes, a dupla jornada de trabalho, a inferioridade salarial para mesmas funções, mesmo quando possuem escolaridade superior. Recentemente até os estúdios de cinema de Hollywood tiveram denúncias de pagar salários menores para as mulheres e da existência de assédios.

De acordo com Mazé, “em geral, as atividades  das trabalhadoras do campo não são suficientemente reconhecidas, sendo classificadas como ‘ajuda’ ou ‘complemento’ ao trabalho do homem, o que limita seu acesso a rendimentos e ao poder de decisão sobre os rumos da produção e da comercialização, ainda sob domínio masculino.”

Como escreveu o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), na peça Casa de Bonecas, “uma mulher não pode ser ela própria nesta sociedade que se construiu como uma sociedade masculina com leis traçadas pelos homens e por juízes masculinos que julgam a sociedade a partir de critérios masculinos.” Já passa da hora de mudar todos esses critérios.


Texto em português do Brasil


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