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Sábado, Novembro 23, 2024

Por que os conservadores entendem Karl Marx de maneira errada

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

Eruditos conservadores são mais propensos a tomar de forma caricata os escritos e ideias de Marx do que a oferecer refutações sérias a seu pensamento.

em Jacobin | Tradução de José Carlos Ruy

Se você quer enfurecer um intelectual conservador, tente argumentar que Karl Marx pode ter algo que valha a pena ser dito. Ou, pior, sugira que um homem que escreveu vários volumes sobre tudo – desde a filosofia alemã até a economia política clássica – pode ter uma teoria mais matizada do que “pessoas ricas são más, pessoas pobres são boas”. Várias décadas após o fim da Guerra Fria, muitos especialistas de direita ainda não se dão ao trabalho de oferecer refutações a Marx além de denúncias simplistas.

A sociedade burguesa moderna, com suas relações de produção, de troca e de propriedade, uma sociedade que juntou meios de produção e de troca tão gigantescos, é como o feiticeiro que não consegue mais controlar os poderes do mundo inferior que convoca por seus feitiços”

Jordan Peterson descreveu o marxismo como uma teoria do mal e ficou famoso ao criticar o neomarxismo pós-moderno, apesar de admitir durante um debate que não leu muito mais do o Manifesto Comunista. Em sua última obra, Não Queime Este Livro, Dave Rubin compara o socialismo ao nazismo e ao fascismo, alegando que Benito Mussolini foi “criado no Das Kapital de Karl Marx” – ignorando os esforços posteriores de Il Duce para aprisionar e silenciar marxistas e outros “inimigos da nação”.

Mais recentemente, Como Destruir a América em Três Passos Fáceis, de Ben Shapiro, recicla velhos ataques sobre o “absurdo” da teoria do valor-trabalho de Marx, e ignora a ironia de elogiar John Locke por apontar que a “propriedade é meramente uma extensão da ideia de propriedade do trabalho de cada um; quando tiramos algo do estado de natureza e o misturamos ao nosso trabalho e juntamos algo nosso, assim tornamos essa propriedade nossa.”

Essa tendência de criticar Marx sem realmente examinar suas ideias é especialmente rica considerando que Peterson, Rubin e Shapiro sempre repetem clichês sobre a importância do trabalho árduo e do debate animado. Uma maneira fácil de descartá-los seria simplesmente insistir que vivam de acordo com esses padrões.

Mas vou seguir uma abordagem um pouco diferente. Vou sugerir que os conservadores evitam lidar seriamente com a obra de Marx não apenas porque ele era crítico do capitalismo, escreveu algumas coisas polêmicas sobre religião ou suspeitava da hierarquia de classes. É porque os escritos de Marx revelam profundas inconsistências nas acalentadas doutrinas conservadoras.

Dois exemplos flagrantes: a tendência conservadora de elogiar o capitalismo e lamentar o declínio da tradição; e a tendência de invocar uma “natureza humana” imutável contra os críticos do capitalismo, insistindo que os indivíduos devem ser compreendidos em relação às tradições e comunidades em que vivem.

Os primeiros defensores do capitalismo liberal, como John Locke, muitas vezes escreveram em termos a-históricos. Afirmaram que os tipos de indivíduos e relações de mercado emergem com o advento da modernidade, e sempre estiveram presentes, refletindo verdades atemporais sobre o mundo e a natureza humana. Foi somente com Kant e mais tarde Hegel que os teóricos começaram a pensar criticamente sobre a novidade radical das sociedades capitalistas liberais.

Para muitos desses pensadores, essa novidade foi motivo de comemoração. O ensaio de Kant O que É o Iluminismo? (1784) descreveu a humanidade como acordando de sua “imaturidade autoincorrida” e finalmente enfrentando o mundo como seres livres e racionais. Hegel foi mais crítico e argumentou que o individualismo revolucionário que decolou no século 18 precisava ser temperado por instituições fortes e relações sociais significativas (algo que hegelianos de direita como Roger Scruton mais tarde pegariam e dariam um brilho conservador).

Marx compartilhava tanto da euforia quanto da ansiedade em relação à modernidade capitalista liberal. De seus dias de “jovem hegeliano” em diante, ele elogiou a nascente ordem capitalista liberal como uma enorme melhoria em relação a seus antecessores abertamente autoritários, mesmo que pensasse que a ordem capitalista estava destinada a ser substituída por uma forma ainda mais elevada de sociedade. Mas Marx também insistiu que apreciamos o que foi uma ruptura radical com o capitalismo liberal do passado.

Escrevendo no período entre a Revolução Industrial e a era do imperialismo europeu, Marx observou como as velhas comunidades rurais estavam sendo destruídas conforme as pessoas se mudavam para as cidades, descrevendo o capitalismo como um “mercado em constante expansão” empurrando a burguesia “sobre toda a superfície do globo.” Criticou a nova cultura do “fetichismo da mercadoria” que substituiu a antiga fidelidade religiosa, invertendo alegremente a linguagem da fé para destacar a nova reverência da sociedade por Mammon.

Embora sempre tenha sustentado que esses desenvolvimentos foram emancipatórios em muitos aspectos, Marx insistiu que essas mudanças também foram calamitosas, quebrando “relações fixas e congeladas” – violentamente, se necessário – para refazer o mundo à imagem do capital. O capitalismo foi um modo de produção revolucionário, transformando constantemente todos os aspectos da sociedade de maneiras inesperadas e às vezes assustadoras. Era inimigo da tradição.

Os primeiros pensadores conservadores foram muito mais sensíveis às convulsões do capitalismo do que seus descendentes – e condenavam a forma como o capitalismo derrubou o mundo existente e estabeleceu uma cultura burguesa vulgar focada no consumo e na opulência em lugar das virtudes transcendentes ou heroicas. Mas autores posteriores, como Shapiro, muitas vezes ignoraram esses problemas, descartando qualquer crítica ao capitalismo como utópica ou marxista, enquanto ao mesmo tempo olhavam com horror para um mundo onde a urbanização, a secularização e o consumo conspícuo se tornaram a ordem do dia.

Se eles tivessem tido o trabalho de ler e absorver Marx, talvez não ficassem tão surpresos. Seu ponto principal era que não se pode simultaneamente condenar o tradicionalismo em declínio e apoiar o sistema econômico que faz “tudo o que é sólido dissolver no ar”. Culpar as elites culturais e acadêmicos das universidades da Ivy League  pela mudança social é como condenar a fumaça por um incêndio.

Outro argumento importante dos conservadores é rejeitar a “teoria da natureza humana” de Marx: ou Marx era perigosamente ingênuo sobre a capacidade humana para o mal e o egoísmo – o que mostra por que sua sociedade ideal sem classes acabou sendo um fracasso na prática –, ou ele acreditava que não havia natureza humana, que somos seres infinitamente plásticos que podem ser feitos e refeitos por um estado suficientemente racional e poderoso comprometido com um planejamento utópico.

Ambas as afirmações são absurdas. De suas primeiras ruminações sobre nossa “espécie ser” determinada pela natureza, até suas ruminações psicológicas posteriores sobre como nosso desejo de reconhecimento e status estimula o “fetichismo da mercadoria”, Marx não era utópico nem ingênuo sobre nosso potencial para a hipocrisia, a crueldade e o hedonismo. Marx foi inovador ao mostrar como as condições históricas e econômicas ao nosso redor desempenham um papel importante na formação de nosso senso de identidade e comportamento.

Isso não significa que somos puramente determinados pelo contexto histórico. Mas Marx argumentou que as condições históricas e econômicas em que nascemos fornecem o ponto de partida a partir do qual todos devemos navegar. Como ele disse em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; eles não o fazem sob circunstâncias autosselecionadas, mas sob circunstâncias já existentes, dadas e transmitidas do passado”.

Parte desse argumento deveria realmente agradar a muitos conservadores. De Edmund Burke a Roger Scruton, uma reclamação comum da direita é que os radicais retratam os humanos como seres a-históricos que podem ser entendidos puramente como indivíduos atomizados. Em vez disso, enfatizaram, todo ser humano está inserido em camadas de comunidade, com tradições e morais consagradas moldadas ao longo da história e instituições, incluindo igrejas e templos, nações e até mesmo a sempre opaca “civilização ocidental”. Essas “pequenas brigadas” afetam a forma como pensamos sobre nós mesmos e no que acreditamos.

Os conservadores frequentemente insistem que ignorar a importância dessas comunidades históricas só poderia levar ao desastre. Marx certamente concordaria. Mas acrescentaria que também estamos inseridos em um sistema econômico historicamente distinto que molda profundamente quem somos e o que acreditamos.

É neste ponto que muitos dos mesmos comentaristas conservadores que insistem em aplicar uma lente histórica e institucional para entender o comportamento humano e as comunidades se tornam a-historicistas piedosos. Eles insistem que o capitalismo simplesmente flui da natureza humana, que sempre existiu e, portanto, sempre deve existir, e que qualquer esforço para mudá-lo só pode resultar em desastre, tão certo quanto exigir que peixes andem de bicicleta.

O seguinte trecho de Ben Shapiro é representativo:

“Não, Marx não estava certo. Mas a esquerda nunca o abandonará porque ele oferece a única alternativa verdadeira para a visão religiosa da natureza humana – a visão do homem que diz que ele não é uma página em branco, não é um anjo esperando pela redenção, mas uma criatura imperfeita capaz de boas coisas. Alcançar essas grandes coisas é um trabalho árduo. Mudar a nós mesmos em um nível individual é um trabalho árduo. Falar sobre os males da sociedade – isso certamente é bastante fácil.”

Mas o capitalismo não é mais ou menos natural do que qualquer outro sistema historicamente contingente, incluindo sistemas religiosos. O que surgiu na história pode mudar na história. E à medida que avançamos pesadamente em outra recessão global, parece que é hora de algumas grandes mudanças.

Marx escreveu a famosa frase que os filósofos sempre interpretaram o mundo, quando o objetivo é mudá-lo. Ironicamente, as interpretações – boas ou más – de Marx mudaram, de fato, o mundo, influenciando movimentos revolucionários. Isso testemunha o poder contundente de sua personalidade intelectual e o alcance analítico da teoria marxista. Reter os fundamentos corretos do marxismo é importante para qualquer debate robusto sobre o futuro do capitalismo e os antagonismos políticos que moldam nossa era.

Para seus críticos, também é um pré-requisito para criticá-lo de forma eficaz. Muitos comentaristas da direita política parecem determinados a ignorar Marx o mais rápido possível, desdenhando ou minimizando nuances e especificidades. Eles também ignoram as lições do marxismo que perturbam inconvenientemente os próprios tropos sagrados.

Marx merece melhores críticas. E aqueles de nós na esquerda que se preocupam com seu legado complexo devem esperar que ele receba críticas sérias.


Texto em português do Brasil, com tradução de José Carlos Ruy

Exclusivo Editorial PV (Fonte: Jacobin) / Tornado


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