As palavras não são criadas arbitrariamente. Elas têm relação direta com a construção. Nomear é inserir uma concepção de mundo ao objeto nomeado. Por essa razão, é preciso questionar a origem da palavra “poetisa”, que não saiu do nada e carrega um contexto histórico e político de exclusão e diferenciação em sua raiz.
O contraponto entre “poeta” e “poetisa” foi uma constante durante a minha pós-graduação, devido aos objetos de estudo que escolhi. No mestrado, analisei Contos Exemplares, de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). Embora a escritora portuguesa tenha publicado mais livros de poemas do que de prosa, é nos Contos que sua escrita feminina se manifesta de forma mais evidente, por meio da transfiguração do corpo na linguagem dos textos. Essa escrita feminina também aparece na forma como Sophia redefine o mito.
Já no doutorado, para investigar “as vestes do corpo e da melancolia na poesia de autoria feminina”, escolhi três outras escritoras – as brasileiras Cecília Meireles (1901-1964) e Henriqueta Lisboa (1901-1985), além da chilena Gabriela Mistral (1889-1957). Defendo que, na obra dessas autoras, há uma “ciranda literária” em torno de temas, símbolos e mitos comuns. Na poesia das três, o corpo de mulher passa a ser protagonista de uma “estética da ternura”, que traz em si a força da melancolia.
Cecília Meireles rejeitava ser chamada de “poetisa”:
“Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta”
Seja no mestrado, seja no doutorado, usei deliberadamente o termo “poeta” para qualificar as escritoras pesquisadas. Exemplo de substantivo comum de dois gêneros, “poeta” serve, sim, para o sexo feminino, assim como, na Língua Portuguesa, “artista” e “dentista” cabem para designar profissionais dos dois sexos. A diferenciação de gênero passa a ser realizada no artigo: o artista e a artista; o dentista e a dentista; e – por que não? – o poeta e a poeta.
O “embate de gênero” é natural, haja vista que “poeta” termina com a vogal temática “a”, associada a verbetes femininos. Mas, como exceção, “poeta” representou, durante toda a História, a pessoa do sexo masculino que escreve poesia. Como a mulher ficou historicamente proibida de escrever durante séculos, o feminino de “poeta” nem sequer foi usado, chegando mesmo a ser quase inexistente.
É apenas quando a questão emerge, no século 20, que “poetisa” passar a ser proposto como o feminino de “poeta”. A palavra é formada em um processo de derivação – e não de sufixação –, o que supõe que “poetisa” não é o feminino natural de “poeta”. Daí a dúvida: haverá um rebaixamento da figura da mulher poeta ao ser chamada de “poetisa”?
Na opinião da feminista norte-americana Andrea Nye, “as palavras assinaladamente femininas no vocabulário sistematicamente encerram uma conotação negativa”. A diferença entre “poeta” e poetisa” exemplifica essa tendência.
“A escolha insatisfatória permanece entre uma raspagem superficial de palavras ofensivas a mulheres e, por outro lado, uma recusa a participar de qualquer significado publicamente constituído. Assim, um termo numa oposição, que deveria ser simétrico, é assinalado como superior”, avalia Nye. Conforme a feminista, “uma reforma linguística deveria restaurar a igualdade; se o termo masculino denotava poder, o mesmo devia acontecer com o feminino. Ou as mulheres devem ser poetas, ou poetisa devia ser revalorizado”.
Ora, do ponto de vista histórico e social, a parte final da palavra – o “-isa” de “poetisa” – traz, sim, o significado de diminutivo. Infelizmente, a diminuição não está somente na origem da palavra – mas também no uso social que se fez e que se verifica na crítica da época, para a qual “poetisa” tem clara denotação menor.
Não é à toa que Cecília Meireles rejeitava ser chamada de “poetisa”, conforme explicita nos versos inicias de Motivo:
“Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta”.
Já Henriqueta Lisboa, em entrevista a Edla Van Steen, em 1982, reforça que o termo “poeta” não tem gênero, correspondendo “a um plano generalizado de criatividade, não de valor preconcebido, nem de categoria diferenciada”.
Um crítico do porte de Otto Maria Carpeaux deixa escapar o uso diminuto da palavra “poetisa”, num texto de 1945, em que compara as obras de Henriqueta Lisboa e Cecília Meireles. Segundo Carpeaux, “a Sra. Cecília Meireles não é poetisa, mas poeta: e grande poeta”. A diferenciação de valores na época sobressai, com clara predominância de “poeta” sobre “poetisa”.
Carpeaux ainda enfatiza a superioridade do termo “poeta” ao juntá-lo ao adjetivo “grande”: Cecília, para o crítico, não estaria ao lado das poetisas – mas, sim, em um reino superior, o dos “grandes poetas”. Nesse breve comentário – testemunho de uma época –, o olhar misógino do crítico evidencia como era enxergada pela sociedade a produção feita por mãos femininas em relação à dos homens.
Por sentir na carne e no corpo os significados das palavras “poeta” e “poetisa”, resolvi estudar a inserção da mulher no campo da literatura, não mais como musa inspiradora, mas como autora. As poetas que estudei se propuseram a discutir a autoria feminina na poesia e na literatura, tornando-se pioneiras nesse tipo de discussão, a partir da visão das mulheres, e não dos homens. Elas engendram a construção de um corpo coletivo de autoria feminina.
Texto em português do Brasil
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