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Sábado, Fevereiro 15, 2025

Por que razão falhou a introdução da contabilidade digráfica na Administração Pública do Estado Novo?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Em artigo publicado no Jornal Tornado de 17 de Outubro de 2024 Um Congresso de História da Contabilidade dei conta de que a 10 e 11 de Outubro teve lugar no Porto um Congresso Internacional de História da Contabilidade, com o tema “As Dimensões Culturais e Sociais da Contabilidade”, promovido pela Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC). Deixei para referência posterior um aspecto mais pessoal que foi ter apresentado uma comunicação numa das sessões paralelas do Congresso, aliás em circunstâncias quase fortuitas: não tendo formação de base na área de Contabilidade nem pertencendo ao “meio” profissional(i), só soube que se encontrava aberta a apresentação de papers, duas semanas antes da deadline definida(ii).

Encontrando-me na altura a trabalhar sobre um vastíssimo conjunto de documentação relativa à Direcção-Geral da Contabilidade Pública e ao seu Director-Geral Aureliano Felismino, incluindo 156 dos 157 Opúsculos do Gabinete de Estudos António José Malheiro(iii) , a totalidade dos Relatórios Anuais da Direcção-Geral (de 1948 a 1973) e a anterior série da Revista de Contabilidade Pública, bem como os Boletins da Sociedade Portuguesa de Contabilidade, de que Felismino foi destacado membro para além de Presidente da Mesa da Assembleia Geral (sucedendo nesse cargo ao sócio nº 1 e fundador Alberto Pedroso Pimenta, após o falecimento deste), considerei estar em condições de apresentar um trabalho que aqui disponibilizo em versão actualizada aos leitores do Tornado, com o título Por que razão falhou a introdução da contabilidade digráfica na Administração Pública do Estado Novo? (1933-1954)(iv) de cujo ficheiro poderão fazer download.(v)

Há duas referências que constituem bibliografia fundamental deste meu novo trabalho:

  • o livro do Professor do Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra Miguel Gonçalves, também assinado por Márcia Simões, Raquel Ferreira e Cristina Góis, História da Contabilidade Portuguesa – o Século XX a que já me referi aqui no Jornal Tornado (A Revista de Contabilidade Pública) e que indica como características do período, a opção da reforma da contribuição industrial de Salazar em 1929 pela não tributação do lucro real, a desqualificação do ensino de contabilidade e a inexistência de planos contabilísticos para as empresas;
  • a tese de mestrado de Olga Silveira defendida em 2000 no Instituto Superior de Economia e Gestão, que já se encontra digitalizada.

Tentando sintetizar a parte do meu trabalho que consiste em “Notas de leitura”, cabe vincar que por altura de 1933, as referências à contabilidade digráfica na Administração Pública abrangiam:

  • uma experiência iniciada na Câmara Municipal de Lisboa em 1911 de aplicação da contabilidade digráfica, aplicação essa que um grupo de contabilistas republicanos teria proposto vigorasse para o conjunto da Administração Pública;
  • uma experiência iniciada ainda sob o constitucionalismo monárquico de criação de serviços municipalizados pela Câmara Municipal de Coimbra presidida por Marnoco e Sousa, sendo que a Comissão que preparou em 1911 um projecto de Código Administrativo republicano previu a generalização da possibilidade de criar este tipo de serviços;
  • algumas experiências nos serviços da Marinha, designadamente na Fábrica das Construções Navais, nas Obras do Novo Arsenal, na Cordoaria Nacional (e em tempo “também no Depósito de Fardamentos da Armada”) como reportou o então tenente Abel da Costa Lázaro num trabalho premiado apresentado a concurso.

A experiência de aplicação da contabilidade digráfica na Câmara Municipal de Lisboa ter-se-á prolongado durante décadas como testemunham várias referências e até um artigo de António Rodrigues de Oliveira na Revista Municipal.

A criação de serviços municipalizados ficou prevista no Código Administrativo (tanto na versão “experimental” de 1936 como na versão de 1940), “por conta e risco” das câmaras municipais, com obrigação de recurso a contabilidade industrial e à publicação de um balanço anual, e elaboração de um estudo de viabilidade prévio á sua aprovação, bem como proibição da prática de preços que fizessem concorrência à indústria particular.

As experiências nos serviços da Marinha ter-se-ão mantido e em 19 de Março de 1947 veio a ser publicada a Lei nº 2 020 (Promulga as bases relativas à reorganização dos estabelecimentos fabris dependentes do Ministério ) em cujas bases se incluem “ Os estabelecimentos fabris do Ministério da Guerra vivem em regime de industrialização e ficam sujeitos aos princípios que regem as actividades das empresas privadas. Têm completa autonomia administrativa, observam rigorosamente os preceitos da contabilidade orçamental e industrial e utilizam o sistema digráfico nos métodos de escrita, idênticos em todas as fábricas, oficinas e laboratórios.” e, com uma preocupação semelhante à plasmada no Código Administrativo em relação aos serviços municipalizados,“Os estabelecimentos industriais na dependência do Ministério da Guerra não podem, em geral, concorrer no campo económico com as empresas ou actividades particulares, nem podem dedicar-se a fabricos ou trabalhos que não se contenham dentro dos objectivos estritamente prescritos na sua organização, salvo em caso de guerra ou de perigo iminente dela.”

Trata-se, julgo, do primeiro diploma assinado por Salazar em que se menciona o “sistema digráfico” e tenho-me interrogado sobre quem teria sido o seu autor material.

É certo que entre 1933 e 1936 Salazar tinha feito publicar três diplomas sobre património do Estado:

  • Decreto-Lei nº 22 728, de 24 de Junho de 1933 (Reorganiza os serviços da Direcção – Geral da Fazenda Pública);
  • Decreto-Lei nº 23 565, de 12 de Fevereiro de 1934 (Classifica os bens do domínio público e privado do Estado, para efeito da organização do cadastro, estabelece normas para se fazer a avaliação destes bens e impõe aos que os têm na sua posse ou superintendência a obrigação de fornecer à Direcção-Geral da Fazenda Pública os elementos de que ela carecer para esse fim);
  • Decreto-Lei nº 27 223, de 21 de Novembro de 1936 (Regula a organização da conta geral do Estado, bem como a utilização dos saldos apurados nas contas de anos económicos findos e define as despesas que podem ser consideradas como extraordinárias).

Segundo explicou, estava em causa o “interesse não puramente científico, mas político e financeiro, de se poder a cada passo cotejar o aumento ou diminuição da dívida pública com as diferenças notadas no património do Estado” Os portugueses iriam ficar surpreendidos por compreenderem que, ano a ano, o Estado ia ficando, afinal, rico.

Escassos anos depois, no Relatório da Conta Geral do Estado de 1938, Salazar recuava perante os custos políticos – e de imagem – do fracasso:

“não se conseguiu ainda que a conta do património, absolutamente necessária para se ajuizar da situação financeira e sobretudo do significado da dívida pública, nos ofereça aquela confiança mínima que deveriam ter os números para constarem deste relatório. A Fazenda Pública continua a rever cuidadosamente os bens e valores do cadastro, e devemos abster-nos de apresentar os resultados enquanto fazê-lo serviria apenas de pretexto para dizer que não podem estar certos”

Já contei aqui o infortúnio do Director-Geral da Fazenda Pública, António Luís Gomes, que Salazar convidara pessoalmente para o cargo (Sobreviventes a Salazar).

E igualmente já aqui contei, em artigo por sinal elaborado logo a seguir ao Congresso de História da Contabilidade, como em 1941 um economista e financeiro de seu nome Joaquim José de Paiva Corrêa, publicara um estudo intitulado Contabilidade Pública Financeiro-Patrimonial que acoplava aos organismos do Estado e à respectiva contabilidade orçamental uma contabilidade digráfica (Independentes na Reforma Administrativa) e dez anos mais tarde reaparecera com mais uma licenciatura – em Direito –, fica designado como Secretário da uma Comissão Central de Inquérito e Estudo da Eficiência dos Serviços Públicos criada pelo Decreto nº 38 503, de 12 de Novembro de 1951

Passo a citar-me a mim próprio:

Não ter sido feito um estudo sobre contabilidade digráfica, elementar quando se dizia pretender analisar custos e rendimentos de serviços públicos, e a Comissão incluía não só Paiva Corrêa, mas também o Inspector de Finanças Figueiredo Dias que prefaciara o seu trabalho de 1941 e o Professor Doutor Fernando Gonçalves da Silva, é manifestamente estranho. Reflectindo um pouco mais percebe-se que nesta Comissão, interdepartamental, a Direcção-Geral da Fazenda Pública não tinha assento e atenta-se em que a partir de 1952 arrancou um esforço de informatização do Ministério (“criação de serviços mecanográficos”) assente numa parceria entre a Direcção-Geral da Contabilidade Pública e a Direcção-Geral das Contribuições e Impostos em que a Direcção-Geral da Fazenda Pública também nunca foi envolvida. Cinquenta anos depois a Direcção-Geral do Património do Estado, sucessora da Direcção-Geral da Fazenda Pública, continuava a receber de todos os serviços públicos e – a arquivar – mapas do Cadastro organizados segundo as Instruções de 1940 que nunca foram tratados.

Aureliano Felismino no seu Relatório relativo à Direcção-Geral e ao ano de 1948 menciona que estaria a preparar uma solução mais próxima da que Salazar deixara em aberto no parecer da Conta de 1938:

Mas partindo-se de certa base, a verdade é que as diferenças anuais têm maior interesse que o valor atribuído no conjunto ao património do Estado.

E à qual a Lei de Meios para 1952 pareceu dar abertura:

A Conta Geral, a partir da referente a 1952, será precedida de um balanço, pelo qual se possa ter conhecimento das mais valias patrimoniais do Estado resultantes da execução do respectivo orçamento.

No entanto para 1953 concerta com o Ministro Águedo de Oliveira a elaboração de um estudo Subsídios para a Organização de um Balanço do Estado, que será distribuído a todos os deputados à Assembleia Nacional mas não dará lugar a grande discussão.

Felismino aguardará pela saída de Salazar de funções para concretizar a ideia de publicar Balanços de Tesouraria e Balanços de Variações Patrimoniais conexos com as Contas Gerais do Estado.

Chegados aqui convém ter alguma prudência na imputação a Salazar de todos os impasses que bloquearam a participação da Direcção-Geral da Fazenda Pública na construção de uma verdadeira contabilidade do património, e a partir daí, de uma contabilidade digráfica. Na altura em que determinou a cessação da publicação dos valores encontrados para o património o Presidente do Conselho de Ministros estava a gerir três pastas exigentíssimas – Finanças, Guerra e Negócios Estrangeiros, aliás passaria em 1940 a gestão das Finanças a João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), que ascenderia a Ministro da Presidência quando Águedo de Oliveira lhe sucedeu enquanto Ministro das Finanças. Poderá ter tido (ou não) intervenção pessoal na supressão de qualquer referência à participação da Direcção-Geral da Fazenda Pública na Comissão Central de Inquérito e Estudo da Eficiência dos Serviços Públicos. De modo geral o regime não insistia no que inicialmente corria mal. E mais tarde ficava a ideia de que era tabu falar no assunto ao Chefe.

Ora durante o Estado Novo a experiência mostrou que desde que se mantivesse a Contabilidade Orçamental regulada pelas normas da contabilidade pública não havia objecção a que os serviços organizassem também uma contabilidade digráfica para efeitos de gestão.

Pelo contrário um artigo incluído na Lei de Meios para 1952 veio até a torna-la obrigatória em certos casos:

Todos os serviços públicos e estabelecimentos fabris do Estado que mantenham explorações agrícolas, pecuárias ou industriais, deverão possuir, independentemente de contabilidade orçamental, uma organização contabilística adequada à importância das mesmas explorações que permita mais perfeita avaliação dos resultados anualmente obtidos e custos de produção.

Em 1956 o Gabinete de Estudos António José Malheiro publicaria um estudo intitulado Actividades económicas de serviços do Estado. Uniformização da escrita digráfica e sua ligação com a contabilidade orçamental.

De notar ainda um possível plano de contabilidade digráfica elaborado para, julgo, a Administração do Porto do Douro e Leixões por um quadro oriundo da Direcção-Geral da Contabilidade Pública que estivera colocado lá.

As indicações que reuni podem ajudar a explicar a rápida expansão da utilização da contabilidade digráfica na Administração Pública no pós 25 de Abril, mas também sugerir oportunidades de investigação relativos à utilização de contabilidade digráfica em organismos em que essa memória se perdeu.

 

Notas

(i) Como aliás comecei por explicar na “sessão paralela”.

(ii) A qual aliás, ao que percebi, já resultava de recalendarização.

(iii) Há um que não foi possível (ainda) recuperar.

(iv) Para a “sessão paralela” foi preparado um powerpoint.

(v) O texto das citações anteriores a 1945 foi, para maior facilidade de leitura, actualizado para a ortografia relativa àquele ano.

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