Ele foi o primeiro dos atores negros a receber o Oscar de melhor ator, bem como o Oscar honorário pelo conjunto da obra.
A comunidade negra de Hollywood deve muito a Sidney Poitier, que morreu nesta sexta-feira (7), de causas desconhecidas, aos 94 anos. Diante de sua morte, boa parte da imprensa tradicional, a começar pelo New York Times, destacou que Poitier “abriu caminho” no cinema para artistas afro-americanos. Ele foi o primeiro dos atores negros a receber o Oscar de melhor ator, bem como o Oscar honorário pelo conjunto da obra.
Gigante diante das câmeras, Poitier era igualmente impar fora delas, conforme atestam diversos discípulos negros no cinema, beneficiários de sua trajetória. “Ele nos mostrou como alcançar as estrelas”, sintetizou a atriz Whoopi Goldberg. “Você nos disse: ‘Se os seus sonhos não os assustam, não são grandes o suficiente’. Pus essa citação na parede da minha filha”, tuitou Viola Davis, vencedora de duas estatuetas do Oscar.
Antes dele, apenas uma negra, a atriz Hattie McDowell, 13ª filha de pais escravos libertos, ganhara uma estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas – a de melhor atriz coadjuvante, em 1940, pelo papel da “escrava da casa” Mammy em …E o Vento Levou. Mas os tempos eram outros: negros eram personas non grata nos eventos hollywoodianos, a não ser na condição de serviçais. Tanto que Hattie, agraciada por sua atuação num dos maiores clássicos do cinema, teve de acompanhar a solenidade longe dos artistas e cineastas brancos, num “puxadinho” do Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles.
Já Poitier receber seu primeiro Oscar em 1964, não como coadjuvante – mas como protagonista do drama Uma Voz nas Sombras. Na trama, ele interpreta Homer Smith, um personagem “iluminado” – um “enviado de Deus” – aos olhos da freira Maria (Lilia Skala). Quando chegou a vez de Poitier receber a premiação, ao menos três fatores realçaram seu triunfo – mais do que o de Hattie McDowell.
Em primeiro lugar, diferentemente de 1940, o Oscar não era mais uma confraternização intra corporis, sem surpresas, de interesse quase exclusivo de Hollywood. Àquela altura, os estúdios já batalhavam pelo maior número possível de estatuetas – um trunfo que garantia incremento na bilheteria. Além do mais, a transmissão do evento ao vivo na TV norte-americana já atraia uma audiência significativa. Desde 1941, os vencedores (“and the winner is…”) passaram a ser conhecidos apenas na cerimônia.
Segundo, havia o contexto político. Sob a liderança de nomes como Martin Luther King e Malcolm X, os Estados Unidos eram palcos de massivas e estridentes manifestações pelos direitos civis. Desde que a comerciária negra Rosa Parks havia deflagrado uma revolução ao se recusar, na década anterior, a ceder seu lugar para os brancos num ônibus municipal de Montgomery, a voz dos negros norte-americanos ressoava cada vez mais alto. A Academia – que, sempre marota, nunca ignorou as ondas de cada época, haja vista o recente movimento #MeToo – aproveitou o Oscar a Poitier para dialogar com esse nicho e fazer barulho.
Terceiro, um golpe de sorte: dos quatro premiados em 1964 por interpretação, somente Poitier estava presente no Dorothy Chandler. Era inevitável que os holofotes se concentrassem nele, seja ao receber a estatueta das mãos da atriz Anne Bancroft, seja ao agradecer, de olhos marejados, pelo prêmio. E a caucasiana Bancroft, para desgosto dos inúmeros racistas, deu um inesperado beijo no rosto do ator premiado – um beijo inter-racial até então inédito na TV norte-americana.
Curiosamente, Uma Voz nas Sombras não é nem o melhor filme estrelado por Poitier, tampouco o mais aclamado ou influente. Ao conquistar um Oscar – ao qual já havia concorrido em 1958, por Acorrentados –, o ator se deu conta de que ganhara poder de barganha junto a diretores e produtores. Nunca mais Poitier abriu mão de tentar incorporar a seus projetos elementos da luta social e racial.
Foi assim, especialmente, no longa-metragem policial No Calor da Noite, a primeira produção estrelada por Poitier a levar o Oscar de melhor filme. O ano – só podia ser – era 1968. No papel do detetive Virgil Tibbs, o ator brilha numa cena memorável, que não estava no roteiro, mas que ele próprio sugeriu ao diretor Norman Jewison. Após levar um tapa na cara do fazendeiro Eric Endicott (Larry Gates), a quem acusa de assassinato, Tibbs devolve o tapa de imediato, com mais força e contundência, deixando claro quem está no comando da situação.
Havia, à época – e talvez haja até hoje –, algo de catártico na imagem de um negro intrépido reagindo às tão frequentes e distintas agressões dos homens bancos. A sequência, porém, não estava originalmente prevista no roteiro – foi o próprio Poitier que, num golpe de audácia, insistiu na inclusão da cena. “Aquele tapa valeu por mil marchas contra o racismo. Foi um choque – ninguém havia visto uma cena daquelas no cinema”, declarou Rod Steiger, que, no filme, interpreta o xerife Bill Gillespie.
Por esse papel, Poitier recebeu a indicação de melhor ator no Globo de Ouro e de melhor ator estrangeiro no Bafta. À sua maneira, o ator – que nasceu em Miami (EUA), em 1927, e foi criado no arquipélago caribenho das Bahamas – contribuiu como poucos artistas para a luta antirracista.
Em Adivinhe Quem Vem para Jantar, também de 1967 e talvez sua interpretação mais lembrada, ele vai ao auge dessa batalha. Seu personagem, John Prentice, se envolve com a jovem Joey Drayton (Katharine Houghton), filha de um casal tradicional e, portanto, racista – Matt Drayton (Spencer Tracy) e Christina Drayton (Katharine Hepburn). Um dia, Joey decide apresentar o namorado à família num jantar, sem revelar a cor da pele dele. Porém, os pais, ao verem, em pleno convescote, que a filha está apaixonada por um negro, não conseguem esconder o incômodo.
O filme tem um final virtuoso, com direito a um dos mais belhos discursos do cinema norte-americano, uma espécie de manifesto pró-igualdade racial, proferido pelo personagem de Spencer Tracy – ator que morreria três semanas depois das filmagens. Especula-se que Poitier ajudou a redigir a fala antológica de Tracy – e que Katharine Hepburn chorou espontaneamente ao rodar a sequência, sem que tamanha emoção estivesse prevista no roteiro.
É por essas e outras interpretações – e pelas mais diversas contribuições ao cinema – que Poitier alcançou, nos anos 1960, o posto de quinto maior ator de Hollywood, com cachês inferiores apenas aos de Richard Burton, Paul Newman, Lee Marvin e John Wayne. E por tudo isso, em 2002, foi laureado com um segundo Oscar, pelo conjunto da obra. Coube a Denzel Washington – que naquela edição do prêmio se tornaria o segundo ator negro premiado como melhor ator – anunciar a homenagem. Poitier foi aplaudido de pé por mais de um minuto.
“Antes de Sidney, os atores afro-americanos eram obrigados a aceitar papéis coadjuvantes em filmes de grandes estúdios, cujas cenas fossem fáceis de cortar em determinadas partes do país”, disse Denzel Washington, na ocasião. “Mas não era possível cortar Sidney Poitier de um filme com Sidney Poitier porque ele era a razão pela qual esses filmes eram produzidos – a primeira estrela individual afro-americana do cinema, com nome sobre o título. Ele era único!”
Quase quatro décadas depois, Poitier evocou o discurso de 1964, agradecendo a produtores e diretores que abriram portas para atores negros nos papéis principais. Mas foi além. “Quando cheguei a Hollywood, com 22 anos, estávamos em uma época diferente de hoje. Eu provavelmente não teria as chances que eu tenho hoje, 53 anos depois, de estar aqui”, afirmou.
“Nenhuma rota para eu ir estava estabelecida. Não havia como rastrear caminhos feitos anteriormente, nem havia uma tradição para eu seguir”, desabafou. “Mas aqui estou nesta noite, no fim de uma jornada que em 1949 seria considerada quase impossível. Uma jornada que só se viabilizou porque uma série de decisões corajosas e abnegadas foi tomada por diversos cineastas visionários – diretores, roteiristas e produtores (…). Eu me beneficiei do esforço deles, os Estados Unidos se beneficiaram – e, de modo maior ou menor, o mundo também se beneficiou.”
por André Cintra, Jornalista | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado