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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Por um Ministério Público gentil e proactivo?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A ideia de que um Primeiro-Ministro se demitiu por estar a ser investigado pelo Ministério Público, conexa com a de que este, politicamente motivado e sem controlo democrático, teria sido instrumental para por fim a um governo de maioria absoluta e determinar de forma anti-natural o encerramento de um ciclo político, terá tendência a enraizar-se na nossa memória colectiva.

Julgo que convém revisitar alguns dos supostos factos em que assenta essa ideia, e simultaneamente discutir se fará sentido defender que, em matéria de combate à corrupção e infracções conexas, o Ministério Público tenha maiores cuidados com a sua actuação, isto é que seja mais “gentil, e que em determinadas circunstâncias procure prevenir o desenvolvimento de uma conduta criminosa ou atalhar os seus efeitos, antes de se produzam maiores danos, ou seja favorecendo uma actuação “proactiva” em lugar de meramente punitiva.

Esta preocupação proactiva pode já ser manifestada dentro do processo penal. Foi-o quando o Ministério Público tendo recebido a informação de que estaria a ser preparada um furto de munições numa unidade militar pediu para colocar sob escuta as comunicações do presumível agente, tendo-lhe sido recusada autorização por um “juiz das liberdades”. Para gáudio universal ficámos a partir daí envolvidos no famoso processo de Tancos. Mas estou a pensar na utilização de instrumentos, fora do processo penal, que peçam a determinados agentes políticos que desenvolvam uma actuação ou dela se abstenham

É de ter em conta o que foi divulgado a propósito de:

  • os processos colocados contra um conjunto de secretários de Estado de António Costa que aceitaram convites da Galp para uma deslocação aos jogos do Europeu;
  • o processo que envolve os alegados desvios de aplicação de verbas atribuídas no tempo de Rui Rio ao grupo parlamentar do PSD;
  • o processo que envolve o antigo presidente PSD da Câmara de Espinho, que exerceu o cargo com Luís Montenegro a presidir à Assembleia Municipal, e o seu sucessor PS;
  • o processo que envolve o ainda Presidente do Governo PSD demitido da Região Autónoma da Madeira e o seu anterior Vice-Presidente, que havia transitado para a Presidência da Câmara Municipal do Funchal, de que entretanto se demitiu;
  • os processos relativos à chamada operação Influencer, entretanto divididos: lítio, hidrogénio verde, centro de dados de Sines, e o aberto no Supremo Tribunal de Justiça.

Vale a pena chamar a atenção para a legislação aplicável, por força quer do Código Penal quer da Lei dos Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos, aprovada em 1987 e desde aí sucessivamente enriquecida, mas de onde também foram excluídos os titulares de Altos Cargos Públicos(i).

O leitor mais calejado em leitura de peças jornalísticas sobre corrupção e infrações conexas estará no essencial familiarizado com a terminologia, mas talvez não tenha uma ideia muito precisa do que é, por exemplo a “participação económica em negócio“. No presente artigo pretendo contudo chamar a atenção para uma previsão da Lei dos Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos de que se tem falado alguma coisa nos últimos anos:

Artigo 16.º
Recebimento ou oferta indevidos de vantagem
1 – O titular de cargo político que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 – Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a titular de cargo político, ou a terceiro por indicação ou conhecimento deste, vantagem patrimonial ou não patrimonial que não lhe seja devida, no exercício das suas funções ou por causa delas, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
3 – O titular de cargo político que, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a outro titular de cargo político, a titular de alto cargo público ou a funcionário, ou a terceiro com conhecimento destes, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, que não lhe seja devida, no exercício das suas funções ou por causa delas, é punido com as penas previstas no número anterior.
4 – Excluem-se dos números anteriores as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes.

Salvo erro, o primeiro escolho penal surgido no caminho dos governos de António Costa foi a aceitação por parte de alguns dos seus secretários de Estado de passagens, estadias e bilhetes para assistirem a um Europeu de que a Galp era uma das empresas patrocinadoras, oferta com que foram também contemplados alguns presidentes de câmara e, julgo, muitas outras entidades. Constituídos arguidos, e apesar de António Costa, com inteira propriedade constitucional, ter explicado publicamente que poderiam continuar em funções e prepararem a sua defesa, os visados preferiram demitir-se, o que, pelo menos no caso do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Fernando Rocha Andrade, foi uma perda sensível para o Governo(ii), acabando o processo numa fase posterior por ser suspenso mediante acordo, sem remessa a julgamento. A comunicação social deu-se entretanto conta de que Mário Centeno também poderia ser “incriminado” por ter assistido a um desafio de futebol por convite, e Costa fez aprovar uma resolução do conselho de ministros definindo um limite de valor abaixo do qual poderiam ser aceites prendas por membros do Governo ao abrigo do nº 4 do famoso artigo atrás reproduzido. Transcrevo seguidamente o artigo aplicável da Constituição.

Artigo 196.º

Efetivação da responsabilidade criminal dos membros do Governo

1. Nenhum membro do Governo pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia da República, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito.

2. Movido procedimento criminal contra algum membro do Governo, e acusado este definitivamente, a Assembleia da República decidirá se o membro do Governo deve ou não ser suspenso para efeito de seguimento do processo, sendo obrigatória a decisão de suspensão quando se trate de crime do tipo referido no número anterior.

Francamente, não me parece que os membros do Governo em causa, aliás brindados por sugestão de um administrador da GALP – Carlos Costa Pina – que tinha sido membro de um Governo do Partido Socialista e que os devia conhecer a todos, ficassem nas mãos da empresa por aceitarem esta prenda, mas é certo que, rigorosamente falando, andou bem outro membro do Governo – Jorge Seguro Sanches – que a não aceitou.

Disse-se na altura – e a evolução na redacção do diploma (1987, 2001, 2010) comprova-o – que a punição autónoma do recebimento indevido de vantagem, que antes aparecia ligada à punição da corrupção, teve em conta a dificuldade de provar a existência de corrupção. Ó Ministério Público, numa situação em que não havia, quero crer, a menor suspeita de corrupção, não quis ser “gentil” e tinha por si a letra da lei. Mas são desenvolvimentos deste tipo – e não apenas a existência de mega processos – que vão tornando a problemática da punição da corrupção cada vez mais complexa.

Esta questão do recebimento ou oferta indevida de vantagem esteve também presente em alguns aspectos da Operação Influencer:

  • o actual Presidente da Câmara de Sines(iii) terá convencido a empresa que estará a construir um centro de dados a dar pequenos apoios a colectividades ou grupos desportivos locais; será isto dar “ou prometer a titular de cargo político, ou a terceiro por indicação ou conhecimento deste, vantagem patrimonial ou não patrimonial que não lhe seja devida”?; julgava eu ser uma preocupação louvável em sede de poder local;
  • idem, terá pedido para a empresa ligada ao centro de dados convencer o Partido Socialista a recandidata-lo nas próximas eleições? será isto um exemplo de vantagem indevida?
  • quanto ao conhecido João Galamba, meteu-se isto, ao que parece, para poder comer sem pagar; passa de economista a papa-jantares…

De novo o Ministério Público se revela pouco gentil. Convenho em que não tinha de o ser. No entanto viola um elementar direito à privacidade a divulgação de que foi encontrada nas buscas em casa de Galamba uma pequena dose de droga que se contém dentro dos limites legalmente autorizados a um consumidor.

Os dois casos em que parecem configurar-se situações de corrupção – o do Município de Espinho e o da Região Autónoma da Madeira – mereciam uma análise mais detalhada, que possivelmente terá de aguardar a formulação das acusações. Miguel Albuquerque cujo Governo foi demitido por decreto do Representante da República sem que tenha sido exonerado do cargo de Presidente do Governo Regional continua membro do Conselho de Estado e a gozar de imunidade. O seu antigo Vice-Presidente do Governo Regional, também indiciado por corrupção, demitiu-se da presidência da câmara do Funchal. No Município de Espinho o Presidente da Câmara PSD Pinto Moreira terá gerido as situações que agora lhe foram imputadas com total à vontade e sem que o seu Presidente da Assembleia Municipal Luís Montenegro tenha, que se saiba, alguma vez alertado para qualquer anomalia. O Presidente socialista que lhe sucedeu terá querido suceder-lhe em “tudo”, e está neste momento, depois de se demitir, ainda em prisão preventiva, enquanto que Pinto Moreira, deputado e até Presidente da Comissão de Revisão Constitucional, e que tardou em renunciar ao mandato, não sendo objecto de medida idêntica, terá ficado mais à vontade para, se o quiser, condicionar inquéritos sobre o passado.

O que se passou com as buscas a sedes do PSD (e ao domicílio de Rui Rio) e com o assalto ao Palácio de Inverno, perdão, à Residência Oficial do Primeiro-Ministro, em 7 de Novembro último, parece enquadrar-se num modus faciendi assim sintetizável:

  • as operações do Ministério Público contra alvos sensíveis iniciam-se com a intercepção de comunicações e quando se torna necessário recorrer a buscas estas efectuam-se de forma sincronizada, por forma a que não possa ser passada palavra para ocultar ou destruir documentos, procedendo-se posteriormente à constituição de arguidos / detenção de alguns destes e seguindo-se a formulação de acusações;
  • quando decorrem as buscas / detenções, verifica-se por vezes a emissão de comunicados pelo Ministério Público de forma a transmitir à opinião pública os contornos das operações, e, uma vez ou outra, clarificar que certas entidades não são objecto de suspeitas.

Aquando das buscas que incidiram sobre o PSD falou-se de mudar a lei para despenalizar a conduta sob suspeita e da necessidade de salvaguardar os arquivos partidários de devassas Imunidade penal dos partidos?. Julgo que será mais adequado reforçar a obrigação de prestação de informação por parte dos Partidos Políticos, com entrega dos documentos que forem solicitados, mesmo que em detrimento das garantias contra a auto-incriminação concedidas à generalidade dos cidadãos, e a efectivação de responsabilidades financeiras, quando a elas haja lugar. Fazer a polícia invadir as sedes dos partidos é desprestigiante para estes, para não dizer que o é para o próprio sistema político, e os fins em vista poderiam ser alcançados por outros meios.

As buscas de 7 de Novembro à Residência Oficial do Primeiro-Ministro constituíram um evento ainda mais desprestigiante para o sistema político, não deixando de pôr em causa a chefia do Governo, tanto mais que coincidiram com a detenção do então chefe do gabinete do primeiro-ministro e do “melhor amigo”(iv) deste. Os 75 800 euros escondidos por este no seu gabinete não corresponderiam, parece, a subornos esportulados pelos seus visitantes, mas o efeito não podia deixar de ser desastroso. Aparentemente estaria apenas em causa a tentativa de influenciar o conteúdo de um decreto-lei sobre licenciamento, inclusive industrial, de forma a viabilizar a construção de um centro de dados em Sines.

No entanto, conhecendo-se o espírito desburocratizador de João Tiago Silveira que desencadeou, aquando da sua passagem pelo Governo, um esforço de modernização que se veio a traduzir num generalizado recurso à informática nos processos judiciais e de registos, e terá sido o autor material do projecto de diploma(v), não se poderia dizer que pudesse ter protagonizado uma distorção na sua lógica com o intuito de favorecer terceiros. Nem que o Primeiro-Ministro tivesse favorecido, com o mesmo propósito, uma solução contrária ao Direito. De qualquer modo, tendo a Procuradora-Geral da República o direito de suscitar a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de diplomas do Governo, pareceria recomendável que comunicasse ao Primeiro-Ministro e/ou ao Presidente da República que no seu entendimento o decreto-lei em causa não deveria ser aprovado pelo Governo ou promulgado pelo Presidente da República. Se tentativa de crime havia, por que não procurar impedir a sua consumação? Um Ministério Público proactivo tê-lo-ia feito.

Quanto ao famoso parágrafo do comunicado de imprensa da Procuradoria-Geral da República que terá levado António Costa a demitir-se, tendo a ver a questão da seguinte forma: uma vez que nalgumas das conversas escutadas os suspeitos de tráfico de influências invocavam posições tomadas pelo primeiro-ministro, seria sempre de ouvir este, no entanto a não indicação, à partida de que excluía que António Costa fosse suspeito, as declarações feitas dias antes pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e possivelmente o conhecimento do funcionamento das pessoas do “meio” adquirido desde o processo Casa Pia, tê-lo-ão convencido de que estava destinado a ser queimado e derretido ao longo dos anos seguintes. Mesmo assim, julgo que, tal como recomendara aos seus Secretários de Estado envolvidos no “Galpgate”, se deveria ter mantido em funções.

Há contudo outra forma de encarar o que se passou: a convicção de que a área do ambiente e das alterações climáticas será essencial em termos de determinação de investimentos, designadamente no sector da energia, com parcerias privilegiadas com outros países, levou António Costa a acompanhar directamente as movimentações no domínio da energia, procurando mobilizar os grandes operadores nacionais, já sem carácter público. A nomeação de João Galamba para Secretário de Estado da Energia teria sido instrumental, e a circunstância de ter continuado a acompanhar alguns dossiers quando passou a Ministro das Infraestruturas, também. Daí o ser escutado desde há quatro anos pelo Ministério Público, numa eloquente manifestação de galambofilia. A tentativa de Marcelo Rebelo de Sousa de o fazer demitir e a resistência de António Costa, tudo estaria ligado. O comunicado de imprensa de Lucília Gago e a rápida aceitação da demissão por Marcelo Rebelo de Sousa, com vista a precipitar eleições, também. Um pouco de teoria de conspiração para o meu gosto, mas não posso exclui-la completamente.

Afinal de contas já tive a experiência de, noutro ciclo político, ser convidado para uma reunião na Residência Oficial por um habitante desta que pretendeu transmitir-me uma suposta vontade do Primeiro-Ministro…

 

Notas

(i) E que no meu entender deveria ter abrangido também os dirigentes máximos das Instituições de Ensino Superior.

(ii) Pelo que pude seguir da actuação deste jovem doutor em Direito e do seu trabalho parlamentar posterior. Por deplorável coincidência ele e outro dos visados vieram a falecer prematuramente.

(iii) Que não conheço e de cuja acção como autarca nunca ouvi falar.

(iv) António Costa dixit.

(v) Que veio a ser publicado, depois do “escândalo” numa versão já reduzida, amputado do licenciamento industrial.

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