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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Por um sestércio

José Cipriano Catarino
José Cipriano Catarino
Professor (aposentado) de Português. Licenciado em Estudos Portugueses e Franceses pela Faculdade de Letras de Lisboa. Mestre em Linguística pela mesma faculdade.

Conta S. Marcos que, pregando Jesus no Templo, os publicanos e herodianos, para O porem à prova, Lhe perguntaram se deviam pagar o imposto a César.

Jesus, habilidoso, quis ver a moeda em que pagavam: — Mostrai-me um sestércio!

Ora aqui é que o santo cronista omite pormenores relevantes, abreviando a história, ou por não os conhecer, uma vez que ainda não tinha nascido, ou, hipótese mais provável, para ocultar a avareza lendária do povo hebraico.

Após demoradas pesquisas, recorrendo inclusive a manuscritos apócrifos, alguns deles ainda inéditos, pude reconstituir a cena que precede o célebre “Dai a César o que é de César.” Foi assim.

— Um sestércio, Mestre? Vós, que abominais o dinheiro, quereis um vil sestércio?

Com aceno de cabeça, Jesus confirmou.

— Onde vou arranjar agora um sestércio? Olhou em volta. Os publicanos fingiam-se atentos aos vendedores de pombas. Os discípulos de Jesus olhavam-nos trocistas: mais uma vez o Mestre lhes ganhava nas discussões. O povo exultava com mais esta vitória do Mestre sobre os doutores da igreja.

Em vão, o publicano escarafunchava nos bolsos da túnica: — Logo hoje, que vim desprevenido… E para um dos herodianos: — Ajudai-me, que já riem de nós!

— Também eu estou desprevenido… Nunca trago dinheiro comigo, sempre digo que Jeová proverá às minhas necessidades…

O rabi olha para os outros. Apressam-se a revirar as algibeiras, para mostrar que nada escondem. Um, em jeito de desculpa: — Tinha um sestércio, mas a minha mulher deve ter-mo apanhado quando lavou a túnica… É sempre o mesmo: dinheiro que encontre nos bolsos desaparece logo!

— E vós, dizem a um dos herodianos, que ao demais sois também banqueiro?

— Também nada tenho, irmãos. Sabeis bem que nós, banqueiros, somos uns pobres de Deus.

Irritado com os esgares de troça, acrescenta desconfiado: — E mesmo que tivesse um sestércio, não o punha nas mãos desse Jesus. Havia logo de dizer que pertencia ao Pai e ficava com ele, ou dava-o a pobre, para fazer figura à minha custa!

Jesus, mão estendida, sorria com beatitude, não pela vitória mais do que certa, talvez com pena destes seus irmãos forretas.

O doutor da igreja que interrogara Jesus desesperava — perder a face por um sestércio, um mísero sestércio!

— Vamo-nos aos cambistas, emprestar-nos-ão o sestércio.

Os outros publicanos olharam-no, duvidosos. — Que garantias lhes dais, quis saber o rabi banqueiro.

— Atrever-se-ão eles a exigi-las, de nós e na casa do Senhor, onde os deixamos exercer a sua actividade?

E para o primeiro deles: — Irmão, emprestai-me um sestércio!

O cambista não era parvo. — É por via da disputa que tendes com o Mestre?

Com aceno de cabeça, o rabi anuiu.

— Perdoai-me, rabi, mas consta que o Mestre dá tudo aos pobres. Quem me devolve depois o meu sestércio?

Foi demais. O rabi, humilhado no Templo a que chamava seu, não se conteve, empurrou para fora o cambista, berrou — Todos já daqui para fora, escumalha torpe, que conspurcais a casa de Deus com os vossos negócios vis! E vendo que se não apressavam a desmontar as bancas, berrou-lhes: — Ou saem a bem, ou queixo-me a Pilatos, até a Herodes, que está na cidade!

Fugiram lestos, as bancas debaixo dos braços. Basta o nome de Herodes, que a pedido de Herodíade mandara matar o Baptista e servir a sua cabeça à jovem Salomé em bandeja de prata, para aterrorizar qualquer um. Os vendedores de pombas, vendo os colegas prestamistas em debandada, ainda tentaram saber a que se devia a fuga precipitada. — Herodes…, foi o que ouviram.

— Herodes?, disse um para os outros? E em resposta, ouviu sentença que resiste desde então ao desgaste dos séculos: — Herodes? Foge, senão ainda te…

— Colegas, que faremos? Perguntou o doutor da igreja que quisera pôr Jesus à prova.

E os outros: — Saiamos nós também.

— E eu, como fico perante o povo?

— Ora, diz que vais a casa procurar um sestércio.

— Ou que nós, publicanos, somos tão pobres como Ele.

O rabi prestamista ainda sugeriu que pedissem a Jesus o milagre dos sestércios, à semelhança do da multiplicação dos pães e dos peixes.

Olharam-no com desprezo: como um homem brilhante nos negócios pode ser tão burro em assuntos comezinhos: — E onde está o sestércio que Ele há-de multiplicar?

Ainda ouviram o Mestre, que ensinava o povo: — Dai a César o que é de César e a meu Pai o que lhe pertence!

— Ora, pois, não vos dizia? Se apanhasse o sestércio, Ele que é o herdeiro do Pai…

Judas, sempre oportuno, ao ver o Templo vazio de comerciantes, bradou: — Por que os expulsastes, Mestre?

Jesus apenas respondeu com o seu sorriso repleto de beatitude. E Judas, sempre lisonjeiro, para as crianças que alegravam o Templo com os seus cânticos: — Vede o poder do Mestre: sozinho, expulsou os vendilhões do Templo!

É o que relatará setenta anos depois o nosso evangelista…

 


Jesus expulsa os vendilhões do templo, Rembrandt, 1834


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