Na altura em que, no início dos anos 1970, frequentava em Lisboa o então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, tive ocasião de conhecer muitos colegas oriundos de Angola e Moçambique, que se mantinham a par do que se passava nas suas terras(i). Um deles informou-me que a candidatura aos órgãos dirigentes da associação académica da universidade da então Lourenço Marques se havia efectuado sob a palavra de ordem “Por uma consciência anti-racista e democrática”. Palavra de ordem avançada na altura e que ainda hoje, em Portugal e em muito diferentes tempos, poderia funcionar como bandeira para agrupamento de pessoas com rectas convicções.
A Constituição da República Portuguesa, aprovada em 1976 e revista em vários momentos, salvaguarda estas preocupações:
Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Artigo 15.º
(Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus)
1. Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.
2. Exceptuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos, o exercício das funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.
3. Aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa com residência permanente em Portugal são reconhecidos, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso aos cargos de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Presidentes dos tribunais supremos e o serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática.
4. A lei pode atribuir a estrangeiros residentes no território nacional, em condições de reciprocidade, capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares de órgãos de autarquias locais.
5. A lei pode ainda atribuir, em condições de reciprocidade, aos cidadãos dos Estados membros da União Europeia residentes em Portugal o direito de elegerem e serem eleitos Deputados ao Parlamento Europeu.
Artigo 33.º
(Expulsão, extradição e direito de asilo)
1. Não é admitida a expulsão de cidadãos portugueses do território nacional.
2. A expulsão de quem tenha entrado ou permaneça regularmente no território nacional, de quem tenha obtido autorização de residência, ou de quem tenha apresentado pedido de asilo não recusado só pode ser determinada por autoridade judicial, assegurando a lei formas expeditas de decisão.
3. …
4. …
5. …
6. …
7. ….
8. É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua actividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
9. A lei define o estatuto do refugiado político.
Artigo 46.º
(Liberdade de associação
1…
2. …
3. …
4. Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.
Mais recentemente a Lei da Nacionalidade foi alterada para reintroduzir um elemento de jus soli, permitindo reconhecer a nacionalidade portuguesa aos filhos de imigrantes nascidos em Portugal, antes mesmo de atingirem a maioridade. O abandono do princípio do jus soli, tradicional em Portugal, foi uma consequência do reconhecimento da independência das colónias portuguesas e da preocupação, que julgo era partilhada por todos os novos estados independentes, em não favorecer a reivindicação de estatutos de dupla nacionalidade(ii). Tanto quanto percebi, a alteração deve muito aos esforços de Rui Pena Pires, professor do ISCTE-IUL, para ultrapassar problemas de integração de jovens cujos pais tinham imigrado dos PALOPs para Portugal, o qual, se bem me lembro, dava o exemplo de o acesso ao desporto federado, via muito almejada de iniciação profissional, só ser consentido a quem detivesse a nacionalidade portuguesa.
Rui Pena Pires, para além de sociólogo, é um português que nasceu em Angola, e julgo que se pode dizer um exemplo de quem promove uma consciência anti-racista e democrática.
É claro que em diversos países que seguiram o mesmo caminho, se pensa hoje em inverter a evolução.
Temos vivido até agora com o Acordo celebrado por Marcelo Caetano com o Brasil, que permitiu a possibilidade de concessão de dupla nacionalidade com igualdade de direitos. A imigração de Cabo Verde e dos restantes países da agora comunidade dos países de língua portuguesa levantaria sempre problemas potenciais de integração. Reconheça-se entretanto que Portugal historicamente teve em muitas ocasiões, mesmo após as independências, emigrantes seus no Brasil e recentemente até em Angola. Pelo menos no caso dos países de língua portuquesa, perceber-se-á que não se pode fazer voltar os imigrantes à “terra deles”, ainda que se revelem “indesejáveis.”(iii). Pena é que os Estados Unidos façam regressar aos Açores imigrantes que nada conhecem das ilhas.
Já disse uma vez aqui que é natural que a seguir às independências / libertações, os habitantes dos países colonizados / ocupados tendam a escolher o antigo colonizador / ocupante como destino preferencial de emigração. Foi o que se verificou com os países da Comunidade Britânica e o Reino Unido, a antiga África francesa e a França, a Albânia e a África fugazmente controlada pelos italianos e a Itália, as ex-colónias holandesas e os Países Baixos, e a própria emigração turca se dirigiu para a antiga aliada Alemanha. Sucedeu o mesmo com Portugal, com a peculiariedade de como país há muito dependente, sermos simultaneamente um país de imigração e de emigração.
O estarmos colocados no extremo ocidental da Europa tem dado origem a que parte da emigração legal e clandestina para Portugal vise o progresso para outros países mais desenvolvidos da Europa. Isso foi por exemplo evidenciado pelo “desaparecimento” de alguns dos marroquinos que vieram de Mazagão até à costa do Algarve de barco, e pelas críticas à circunstância de a autorização de residência em Portugal para imigrantes da CPLP não dar acesso a outros países da Europa.
Nem na Constituição da República Portuguesa nem nas leis europeias está, julgo, consignado ser “Inegável a tendência consensual do papel histórico das migrações no desenvolvimento global da espécie humana, factor incontornável na fundação e desenvolvimento de países, nações, culturas, línguas e impérios – civilizações. Incontornável e irreversível, queiram ou não queiram os cruzados de todos os matizes e culturas.”, a que se referia um amigo que comentou o meu Revisitando Filhos da Terra, de António Manuel Hespanha (1945-2019).
A meu ver, importaria encontrar alguma regulamentação satisfatória em três aspectos:
- desligar a aceitação do pedido de autorização de residência para trabalhar dos pedidos de concessão de asilo;
- evitar que o influxo de mão de obra imigrante se traduza em perdas de empregos acessíveis aos nacionais ou aos imigrantes já no país, ou em criação de pressões para a manutenção de salários baixos;
- clarificar o grau de exigência de adesão dos imigrantes aos usos e costumes do país de acolhimento.
Desligar emigração económica e procura de asilo pode parecer fácil no papel, em teoria bastaria à partida excluir pedidos formulados por nacionais de um grande número de países, mas nestas matérias existe sempre a possibilidade de se desconsiderarem casos individuais relevantes; entretanto, a reserva das decisões aos tribunais, com exclusão da possibilidade de deportação por mera decisão administrativa, tem constituído um incentivo a esquemas engenhosos de “parqueamento” de migrantes em países terceiros subsidiados (Turquia, Albânia(iv), Ruanda).
A utilização da mão de obra imigrante para manter os custos de produção baixos e os lucros altos está dentro da lógica do sistema, e terá sido essa uma das razões que levaram, não muito racionalmente, ao enraizamento da extrema direita em alguns países e zonas de imigração. Poderia ser ensaiada a incidência de uma tributação adicional sobre os empregadores de imigrantes, consignada por exemplo a um subsídio ao alojamento, mas a experiência estará a mostrar, pelo menos em Portugal, que a fiscalização no terreno nem sequer consegue garantir o pagamento do salário mínimo.
Quanto à adesão dos imigrantes aos usos e costumes do país de acolhimento, já estará a cair a “reivindicação” de que os imigrantes falem em público a língua do país de acolhimento e, em Portugal, não temos tido muita controvérsia interna sobre os trajes de cada um(v).
A criação de uma Agência para as Migrações e consequente transferência de competências policiais do SEF para as polícias já existentes estaria, pelo que foi recordado, dentro das orientações sufragadas pelo PS, mas durou três ministros da Administração Interna a concretizar – Constança Urbano de Sousa que tinha um perfil academicamente indicado para o efeito mas foi incapaz de desbloquear os problemas das outras polícias e acabou por ser chamuscada pelos grandes incêndios florestais de 2017, Eduardo Cabrita, estudioso de regionalizações e descentralizações, que tomou conta da Administração Interna e teve a coragem de denunciar o caso Igor, José Luís Carneiro. A incapacidade de a operacionalizar antes do fim do ciclo político é contudo uma falha que deve ser imputada a António Costa. Bem sei que não havia pressa por até ter uma maioria absoluta. Tinha uma maioria absoluta.
Tomando nota de todos os que à direita, do PSD ao Chega, desejam introduzir políticas e quotas de imigração, seleccionando os candidatos mais “convenientes”, faço notar que enquanto a Agência não estiver operacionalizada será muito difícil preparar e aplicar políticas migratórias, quaisquer que elas sejam. O sentimento de que nesta matéria estamos sem rei nem roque talvez venha a desfazer-se a curto prazo.
Diz-me entretanto a minha sensibilidade que seria preferível diversificar as origens dos migrantes, e tanto quanto possível encorajar as vindas de que tem alguma relação anterior com o País. Quando uma comunidade de imigrantes começa a crescer numericamente, logo aparece gente a falar de “ invasão”, esquecendo-se curiosamente o que se disse em tempos dos “invasores” anteriores(vi). Os inimigos agora já não devem ser procurados e abatidos no Bairro Alto, ainda que tenham cidadania portuguesa, mas no Martim Moniz e na Rua do Benformoso. Não são pretos mas castanhos. E são tomados como alvo não em função da sua nacionalidade mas em função da sua religião. E não é apenas o grupo a que me referi no artigo Por uma Polícia Preventiva, mas toda uma série de “activistas” que fui conhecendo no Facebook ligados a outros projectos e que agora alinham na denúncia da “ameaça islâmica”, isto sem falar no “grande dirigente” que perora sobre a nossa “matriz judaico-cristã” sem mencionar as nossas também raízes islâmicas, aliás Constança Urbano de Sousa referiu em entrevista recente que a opção entre conversão ou saída foi “oferecida” por D. Manuel I simultaneamente a judeus e a muçulmanos.
Não sei se a presença de 60 mil imigrantes do Bangla Desh (“Bengala Livre”) que se separou há 52 anos do Paquistão com a ajuda do exército da Índia cria algum incómodo em Portugal. Um articulista do Jornal Tornado publicou em tempos um texto sobre essa separação (O Bangladesh, cinquenta e dois anos depois) chamando a atenção para que no Bangla Desh a religião muçulmana é seguida com menos radicalismo que noutros países(vii). De qualquer modo sou nacionalista quanto baste, e nessa qualidade rejeito uma agenda que me apercebi há dias vir de Itália, em que Meloni e Salvini estão a procurar capitalizar politicamente os mesmos medos e a criar entraves à celebração de cerimónias de culto por parte da comunidade bengali argumentando desta vez com o respeito pelos usos e costumes da Itália católica.
Notas
(i) Pessoalmente, não tive muito contacto com estas realidades: em 1969, com outros alunos liceais, frequentei um Curso de Estudos Ultramarinos que me valeu a mim e a outros colegas uma viagem de Verão a Moçambique, saltando entre capitais de distrito, com regresso por Luanda capital de uma Angola que já tinha sido visitada por colegas que haviam frequentado o mesmo curso.
(ii) Não conheço a realidade brasileira. Dos restantes países da actual CPLP fiquei a conhecer Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Angola através de cooperação – consultoria e formação no domínio das Finanças Públicas. Não se trata de actividade que recomende para quem está na primeira parte da carreira, mas pelo menos procurei conhecer os sistemas implementados pós-independência e valorizar as soluções encontradas pelos quadros locais, competentes e empenhados. A adopção de medidas de descongestionamento da Administração Pública cabo-verdiana, copiadas de Portugal, através de aposentações antecipadas, foi dos maiores crimes que se poderiam cometer num país com falta de recursos humanos.
(iii) Não percebi ainda se a involução que neste domínio se pretendeu consagrar em França passou no controlo de constitucionalidade. É claro que quando um crime é cometido por um soit disant “radicalizado” logo se ia ver se era argelino, tunisino ou marroquino, e quando se percebeu que começavam a aparecer jovens com a nacionalidade francesa, quis-se fazer marcha atrás. Já o Reino Unido não se ensaia em retirar a nacionalidade aos indesejáveis e convertê-los em apátridas. Portugal, que tem outras opções constitucionais, lá tem vindo a julgar os que são seus nacionais.
(iv) Por muito que Georgia Meloni tenha percebido que a chave da questão seja o desenvolvimento de África, ou pelo menos que seja politicamente correcto dizê-lo.
(v) É certo que apenas tenho praticamente a experiência dos transportes públicos da área da Grande Lisboa, em que ninguém interfere com o vizinho do lado, a não ser, muitas vezes, para lhe oferecer o lugar, sendo o Metropolitano de Lisboa o exemplo mais acabado de variedade de trajes.
(vi) Há dias estava a tomar café perto da minha residência na margem sul e ouvi na mesa do lado uma senhora, mais idosa do que eu, dizer que “os africanos são mais humildes”. Isto não se diria possivelmente nas primeiras chegadas de cidadãos dos novos estados africanos após a independência mas tomei-o como reconhecimento de uma postura de maior deferência para com os idosos.
(vii) Nada me atraindo particularmente para o convívio com a comunidade bengali, não deixarei de referir que nos últimos meses tenho frequentado as bibliotecas do Ministério das Finanças no Terreiro do Paço e almoçado em restaurantes do Campo das Cebolas reconvertidos, em que um é gerido por pessoas do Bangla Desh e o outro conta com vários bengalis no seu pessoal. Trabalham, ganham honestamente a sua vida, e esforçam-se por falar português. É claro que para lidar com o turismo estão mais apetrechados que os portugueses, uma vez que dominam o inglês…