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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Por uma polícia preventiva?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

A marcação de uma manifestação contra a “islamização da Europa” voltou a pôr quase toda a gente que interveio nos dias subsequentes a perguntar se a dita poderia ser proibida e, em caso afirmativo, quem a poderia proibir. De novo se voltou a pôr em causa a lei que regula as manifestações, o Decreto-Lei nº 406/74, de 28 de Agosto (Garante e regulamenta o direito de reunião).

Já escrevi em 7 de Julho de 2021 no Jornal Tornado um artigo sobre Recordações dos Governos Civis onde chamo a atenção para que esse diploma é pré-constitucional, o que se vê por exemplo nos objectivos:

Artigo 1.º – 1. A todos os cidadãos é garantido o livre exercício do direito de se reunirem pacificamente em lugares públicos, abertos ao público e particulares, independentemente de autorizações, para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou colectivas e à ordem e à tranquilidade públicas. 2. Sem prejuízo do direito à crítica, serão interditas as reuniões que pelo seu objecto ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às Forças Armadas.(i)

e também na identificação das entidades a quem deve ser comunicada a intenção de realizar manifestações:

Art. 2.º – 1. As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito.

Por Fonte, Conteúdo restrito, https://pt.wikipedia.org/w/index.php?curid=3488549

A este último respeito tive ocasião de explicar que se vivia então sob o regime do Código Administrativo em que o governador civil e o presidente da câmara municipal eram considerados magistrados administrativos, sendo o presidente da câmara nomeado pelo Governo enquanto que os vereadores das câmaras emanavam – por sufrágio indirecto – dos eleitores. Com a aprovação da Constituição de 1976 só o governador civil continuou a ser representante do Governo mas é curioso que não se tenha revisto neste ponto a lei – afinal de contas as comunicações com as capitais de distrito foram progressivamente melhorando – e ainda mais curioso que Miguel Macedo, Ministro da Administração Interna do Governo Passos Coelho/Portas tenha alcançado um grande êxito de poupança com a extinção dos 18 governos civis até aí subsistentes e tenha remetido para os presidentes de câmara das capitais de distrito as funções que estes exerciam em relação às manifestações.

cm-lisboa.pt

António Costa, antigo Ministro da Administração Interna e então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa foi contra e fê-lo saber, mas ele próprio enquanto Ministro, ao estruturar a Protecção Civil, tinha tentado “reunificar” os níveis governamental e autárquico. O seu sucessor, Fernando Medina, revelou, como se sabe, grandes qualidades políticas na gestão das manifestações à porta das embaixadas. Não deixa de ser curioso que tenha sido sucedido por Carlos Moedas, colega de Miguel Macedo no governo que remeteu a competência para interditar manifestações para os presidentes das câmaras municipais. Moedas está amarrado a uma retórica anti-racista mas o que sucederá se um dia destes a questão se puser numa câmara em que o Chega tenha conquistado a presidência.

No domínio do processamento das comunicações relativas à intenção de realização de manifestações a PSP tem tido um papel fundamental na manutenção da ordem pública e na prevenção de possíveis ofensas ao direito à vida e à integridade física dos participantes ou das pessoas com quem se cruzem. Para isso é preciso colher informações, o que assenta largamente numa tramitação burocrática, mas é sempre feito conscienciosamente(ii). A propósito da recente intenção de manifestação “contra a islamização da Europa” que ia ser conduzida de forma a intimidar imigrantes hindostânicos alegadamente muçulmanos através de uma marcha através do Martim Moniz e da Rua do Benformoso a PSP soube fundamentar a decisão de interdição com base nos riscos para ordem pública e para as pessoas. E por muito que o Correio da Manhã, desprezando o novo accionista Cristiano Ronaldo, tenha afirmado que a PSP iria vigiar no passado Sábado 3 de Fevereiro, os “extremistas” dos dois lados, a sua presença junto à concentração no Largo do Intendente, não afectou a mobilização para esta, enquanto que o ter “encapsulado” as dezenas de indivíduos que desceram do Largo Camões até à praça do Município funcionou como uma humilhação.

Duas manifestações completamente opostas tomam as ruas de Lisboa

Num pormenor contudo me parece ter havido falha: seria de ter interditado o transporte de tochas durante a manifestação, por muito que a interdição afectasse o amor próprio dos émulos do klan estado unidense – é que podem funcionar como armas.

Há consequências jurídicas a retirar do que se passou:

  •  por um lado haverá que analisar a recusa do pedido de intimação para protecção de liberdades direitos e garantias(iii) colocado por Mário Machado, que se licenciou em Direito, recorde-se, e pelo seu advogado, que funcionou nitidamente como um anti-climax;
  • por outro lado nada impede que se venha a pedir a dissolução do “1143” ao abrigo da lei que proíbe as organizações fascistas.

Curiosamente o diploma de 1974 em relação às manifestações tinha sido muito citado nos últimos meses para pedir a punição de manifestantes que cometeram o único crime em que me parece haver consenso em matéria de manifestações: o realizá-las sem participar previamente a sua convocação. É claro que de per si o corte de estradas – e toda e qualquer actuação equivalente – está também criminalizado, tanto quanto me lembro desde que se formou o primeiro Governo de António Guterres a seguir ao bloqueio da ponte 25 de Abril nos últimos tempos do ciclo de Cavaco Silva.

Como é conhecido, a PSP tem vindo a realizar detenções de todos e quaisquer manifestantes “climáticos” e até, num caso, de professores, que se deslocavam para junto de uma Câmara Municipal.

Faz-me lembrar no Felizmente Há Luar!:

  • Então vocês não sabem que estão proibidos os ajuntamentos?
  • Posso dormir com a minha mulher ou também formamos um ajuntamento?

E , num esforço adicional que talvez pudesse ser dispensado, tem detido “activistas climáticos” que ainda não fizeram nada mas poderiam estar a preparar uma manifestação.

O Automóvel Clube de Portugal, de que sou sócio, dedicou o seu número de Novembro de 2023 a esta problemática num artigo intitulado “Radicalismo ambiental: crime sem castigo”. No artigo transcrevem-se diversas afirmações de um advogado especializado em Direito Penal, tais como:

Não me parece possível que haja protestos ou reacções em defesa do melhor dos valores que possam servir para atacar o próprio sistema que nós queremos que promovam os tais valores, porque de outra forma estamos a defender aquilo que no século XX surgiu como a teoria do anarquismo, uma corrente que nunca resolveu problema absolutamente nenhum.

A seguir o artigo refere-se à figura jurídica da associação criminosa que justificaria acções preventivas das autoridades sobre o Climáximo e a Greve Climática Estudantil. E volta a dar a palavra ao mesmo advogado:

A partir do momento em que é detetada uma célula, um grupo, para praticar atos que não são permitidos pela lei penal, obviamente se deve atuar para que a bola de tinta não seja atirada contra um ministro, para que a 2 ª circular não seja cortada, para que uma obra de arte não seja destruída. É para isso que serve a polícia. As polícias não têm só uma função repressiva.

As justificações para uma actuação preventiva da polícia podem colocar-se, como se vê, em diversas áreas. E implicam uma actividade regular de obtenção de informações por parte das polícias. Que, mesmo que estas não disponham de serviços de informações próprios, a sociedade espera que elas tenham. Quem rouba catalisadores? Quem rouba cablagem de cobre? Quem passa droga junto de alunos das escolas? Etc, Etc… Independentemente da abertura de processos para averiguação de crimes concretos espera-se que as polícias, e não os sistemas de informações oficiais sujeitos a controlo parlamentar “referenciem” prováveis criminosos em certos tipos de crime.

Até que ponto é que é legítimo fazê-lo SEM LEI? Quem deve decidi-lo? Os próprios comandos policiais? Os Governos? O Ministério Público?

Já tive uma vez ocasião de me pronunciar sobre uma situação subsequente a uma manifestação realizada no tempo da Troika junto a São Bento em que os muitos manifestantes que, após o encerramento oficial da acção permaneceram junto do Palácio e não acataram a ordem de dispersão acabaram não só por sofrer uma carga policial muito violenta e em muitos casos, serem perseguidos quando estavam já à procura de transportes, em certos casos ser convocados ao DIAP para serem acusados de atirar objectos à polícia. Não tendo estado na manifestação, o depoimento de uma das activistas que tentaram incriminar e os próprios termos de um protesto do advogado António Garcia Pereira, vieram a convencer-me de que, com ou sem conhecimento do Ministro Miguel Macedo e da Inspecção-Geral da Administração Interna, parecia existir a nível de Lisboa um entendimento entre comandos da PSP e procuradores do Ministério Público para uma repressão selectiva.

Escrevi na altura:

Não creio que a PSP tenha cobertura legal, vocação, e até recursos adequados para fazer recolha e análise de informações na área política. Daí até à referenciação de todos os múltiplos movimentos cívicos que têm surgido e dos seus activistas como suspeitos, vai um pequeno passo que os últimos acontecimentos levam a crer que já foi transposto.

 O caso Paula Montez e as secretas desconhecidas

Pouco depois morria esse ensaio de “polícia preventiva”, justamente quando se pensava que iria obter um dos seus maiores sucessos. Umas centenas de manifestantes entraram num dos acessos à ponte 25 de Abril e foram capturados pela PSP que, parece-me que com alguma lógica, pensou que iriam cortar a ponte. No entanto a Procuradora – Geral da República recentemente nomeada, Joana Marques Vidal, emitiu através do seu Gabinete um comunicado a explicar que não iria proceder contra os detidos. Possivelmente ela e Miguel Macedo resolveram acertar agulhas e não voltaram a registar-se durante muito tempo episódios desta natureza.

Hoje em dia há outros protagonistas e os tempos estão perigosos. Se for detido por activismo e tiver esquecido o seu tractor em casa, tem sempre um recurso: cante o hino nacional.

 

Notas

(i) Confronte-se este artigo com o Artigo 45º da actual Constituição:
“ARTIGO 45.º
(Direito de reunião e de manifestação)

1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização.
2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação.”

(ii) Numa ocasião em que o Sindicato Nacional do Ensino Superior, de cuja Direcção fui membro, promoveu uma concentração junto do Palácio das Laranjeiras para exigir de Mariano Gago o cumprimento de princípios acordados em sede de concertação social, lá apareceram na sede uns guardas a pedir informações.

(iii) Tecnicamente não se tratou de um “recurso” do despacho de interdição do presidente da câmara.

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