Dormir cansa e desfalece! A vida fustiga e a gente sente a cada passo o cheiro vernáculo da existência.
Precisamos do breu e do amanhecer de olhos abertos em direcção ao infinito vislumbrando o finito das finitudes da realidade. A vida cansa e faz-nos desfalecer, precisamos vê-la nem que seja pela janela ou pelos os alpendres do quintal abandonado.
As plantas florescem o amanhecer decorado pela sombra tardia do sol e nós sentimo-la como um estímulo para despertar. O sono leva-nos a sonhos e a gente nada percebe depois, o sonho vadia a nossa alma tomando conta de todos os nossos gestos e é durante o sono que tudo acontece fugindo do essencial que é a verdade não dormindo tanto, precisamos da vigília que nos guia, essa intempérie que nos acompanha tempos infinitos e enquanto vivos partilhamos com ela desabafando, mesmo que calados, uma partilha da vida que formos vivendo.
Respirar a erva e senti-la desbravar pelos campos, sorver da sua vida, entendê-la, sabemos tão bem explorar o seu crescimento e acompanhamo-lo pela manhã, ao despertar das cavernas frias do sono.
As orquídeas misturam-se no esplendor das palmeiras e vegetam criando no horizonte uma floresta de caminhos verdes e coloridos e distantes onde quem por lá passe vislumbre, onde quem observe sinta o silêncio rico das fantasias inebriadas com instantes divagantes deste sono despertado e vespertino apenas os laicos dormem, sim, mais descansados porque sim.
À noite a poesia dos estrondos que vagueiam o sono, sonhamos com o resquício dos restos, a glória dos poucos ou com a honra dos idos, lembramos e perdemos assim que acordamos as histórias do pai na sala ao amanhecer, o relato da mãe, as histórias de família enquanto todos à mesa desfrutam o pequeno almoço de mesa cheia.
Sinto ao de leve não sei vindo de onde, “dormir muito cansa!”, ouvi e nem sequer discuti, talvez seja um devaneio meio embrenhado nesta sala de tantos a deglutir um pequeno almoço sem saudades, com saudades, seja o que for, sejamos discípulos do despertar, talvez só nesta família de regras, onde se seguem princípios de tradição, onde o pequeno seja o recolher da parada para a jornada, sai lá, tudo isso me faz pensar e bem, tenho família!
O meu pai à cabeça da mesa e nós desfilados numa hierarquia tradicional, começamos pelo mais velho e seguimos, por ordem, aos mais novos. Bebamos do dia, dizia alguém onde talvez sonhara escutar, ouvi sentado na minha esquina, nesta mesa varrida de fome para o momento e todos nos alimentamos ouvindo a retórica da vida.
Ainda as vozes ao canto da sala creio, talvez ao fundo do escuro que nasce a cada instante bebendo do tempo, acordar cedo e levantar rumo à vida, essa coisa saborosa que nos vislumbra e descobre, essa névoa de saudade que nos enaltece e são saudades permanentes a coisa nossa da nossa vida, recordamos o futuro ainda por chegar e caminhamos rumo a si, ver os muros da rua crescerem com o frio que faz, o vento que deslumbra ventoinhas e até o celeiro agradece, a vida esvaída na verdade de sentir o fluir do real e a diáspora na tua alma, no rés do chão das tua caminhadas percorrendo os caminhos do teu casebre em sentido e enquanto isso, nada, tudo faz parte do mesmo nem que seja de novo recolher aos lençóis e boa noite a todos.
E a repetir-se a voz vinda de não sei de onde, dormir muito cansa. Porque cansa então?
Levanto-me, dirijo-me à janela que dá para as traseiras e penso sem sonhar já que sonho sempre, sonhar faz-me viajar contramuralhas e ventos e enquanto isso nada mais, sinto ali uma verdade escondendo-se ao fundo, junto aos barcos que naufragam e estacionam numa maresia abandonada de tudo. Iria um dia descobrir este porto de abrigo sem vontade de ser mar, a sala por baixo do quarto onde sempre me refugio, sinto cada passo, cada sorriso ou gargalhada e tudo na mesma em mim, a saudade não me cansará, penso, e viajo o salubre da tarde a dar contas ao fim do dia.
do livro Reflexões Profundas,
Vítor Burity da Silva
Crónicas