“Não te preocupes, tu tranquila” diz-me Mohamed Balla com um sorriso aberto que oferece a todos que falam com ele.
Balla é saharaui e vive de momento na Casa dos Heróis, uma casa da Fundación Sahara Occidental (FUSO) em Badajoz, que acolhe ex-presos políticos e activistas saharauis para que possam realizar consultas médicas, muitas vezes seguidas de operações múltiplas e tratar da documentação espanhola.
Todos os ex-presos que conheci nessa casa e que entrevistei sofreram torturas horríveis, muitos deles com mais de uma década de prisão.
Mohamed Balla concordou em contar-me a sua história, algo que pode parecer fácil mas não é. Nenhuma história de vida saharaui é fácil de contar e nenhuma fácil de ouvir.
Começamos pelo trivial, nasceu em 1979 em El Aaiun, capital do Sahara Ocidental, quatro anos após o abandono de Espanha do território e a invasão de Marrocos.
Tem os dois pais vivos, assim como três irmãs e um irmão e vários sobrinhos, todos vivem em El Aaiun.
Estava a estudar Geografia e História na Universidade de Agadir em 2005, quando foi detido.
Cresceu em El Aaiun num ambiente de constante repressão, e até 1991 em guerra. “Sabes é como uma prisão, saímos de uma prisão para a outra, tudo é prisão”. As ruas de El Aaiun estão repletas de carrinhas de intervenção, de polícias e militares e agentes “secretos”, os colonos marroquinos são incentivados a maltratar os saharauis que vivem um apartheid, político, social e económico e rodeados por um muro de 2720km de extensão altamente fortificado e com mais de 150 mil soldados que divide os territórios ocupados dos territórios libertados.
Começou muito cedo a ser reivindicativo, já na escola técnica que frequentou, participava nas acções de protesto dos estudantes para melhorar as condições da escola.
Em 2005 foi um dos muitos jovens que organizaram e participaram numa manifestação pela autodeterminação que ficou conhecida como o inicio da Intifada Saharaui, uma intifada de expressão não violenta que continua até ao dia em que alcançarem a independência.
Essa manifestação foi brutalmente desmantelada pelas autoridades marroquinas e no rescaldo foram detidos muitos activistas, homens e mulheres entre eles alguns dos mais conhecidos Amnietu Haidar, Hmad Hammad y Ali Tamek.
No início da noite de 8 de Agosto 2005, ele e um amigo foram sequestrados por vários polícias à paisana em plena rua em El Aaiún que os espancaram e levaram para um estacionamento de carros da policia, ameaçando-os com pistolas e onde chegaram mais dez polícias que continuaram a espancá-los, sem fazer qualquer pergunta, apenas os espancavam de forma brutal.
Mohamed faz uma pausa. “Queres parar?” pergunto. “não… é normal, é a ocupação”, responde e olha em redor com um ar triste. Noto que a ansiedade começa a tomar conta dele, o corpo fica tenso, a postura toda muda, levanta-se e senta-se, e continua.
“Passado uma hora colocaram-nos algemas, puseram uma venda nos olhos mas também a tapar parte da boca, tinha muita dificuldade em respirar… e meteram-nos no porta bagagem de um carro. Fomos levados para uma esquadra.” Mohamed fala mais baixo e fazemos outra pausa.
Custa-me ouvi-lo, já o conheço há alguns anos, um homem sempre disposto a ajudar, sem maldade, trabalhador, inteligente, curioso e de uma educação extrema, um sorriso luminoso e uma determinação férrea de seguir a luta pela autodeterminação. Custa-me ver a tristeza que tomou conta do rosto e o nervosismo, a ansiedade que lhe provoca recordar tudo, mas tem que ser.
Segue: ” Na esquadra tiraram-nos as vendas e começaram o interrogatório e a tirar as impressões digitais, sem nunca nos informarem por que tínhamos sido presos, passada uma meia hora começam a fazer perguntas sobre os contactos todos no meu telemóvel, família, amigos, activistas, e amigos estrangeiros. Queriam que eu disse-se quem nos organizava nas manifestações, como não respondi levaram-me para uma sala/armazém imunda e começaram as torturas… e segue o interrogatório, pontapés, golpes, espancamento com bastões e com tábuas em todo o corpo e na cabeça, tinha as mãos algemadas e os olhos vendados, estava em cuecas,… ameaças, fizeram muitas ameaças…” respira fundo e olha para o horizonte… ” ameaçaram-me de violação, sodomia, ameaçaram que iam fazer o mesmo à minha mãe, ao meu pai, às minhas irmãs… foram muitas horas”.
No final do dia 10 fizeram uma pausa e levaram Mohamed a uma sala onde se encontravam agentes da inteligência marroquina, desvendaram-no e ofereceram-lhe trabalho e casa em troca de informações, ele nunca quebrou e em consequência foi levado de regresso à mesma sala e as torturas continuaram, mas desta vez pior.
Esteve três dias sem beber, sem comer e sem dormir, perdeu a consciência várias vezes. Mohamed foi torturado com a técnica conhecida por “frango assado” que consiste em “pendurar” a vítima num pau pelos joelhos e com as mãos atadas por cima das canelas enquanto é espancada. Este método é dos mais utilizados contra os Saharauis e deixa lesões nos ombros e joelhos para o resto da vida.
“Durante a tortura fui obrigado a assinar folhas sem saber o que diziam, não me deixavam ler… Acabei por ser condenado a dois anos de prisão com Hmad Hamad, éramos um grupo de 37 presos e ficamos conhecidos pela nossa união dentro da prisão e porque fizemos uma greve de fome de mais de 50 dias. Saímos mais cedo, foi-nos concedido um “perdão real” devido à pressão internacional. É esta a nossa vida, sempre todos os dias, continua igual.”
Mohamed continua a denunciar e a lutar, vai e vem do Sahara Ocidental à Europa, as fotos que tirou do interior da infernal prisão negra de El Aaiun correram mundo, nelas pode-se ver os presos a dormir no sistema sopa, de lado, um para cima outro para baixo, em celas sem ventilação, sem luz natural, com 20m2 e mais de 50 pessoas.
“Não venho para a Europa para ficar a viver aqui ou para fazer dinheiro, venho cá para denunciar a situação para conseguir que o mundo nos veja e fale de nós. O nosso território é riquíssimo, temos peixe, petróleo, água, minerais, fosfatos, temos tudo para não necessitar de esmolas de ninguém. Mas não temos a liberdade, não temos a nossa independência, Marrocos obriga-nos a viver como pobres e rouba tudo. Já chega! Tudo tem um fim. Queremos viver em paz na nossa terra.”