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Sábado, Novembro 2, 2024

Porque o caminho obsoleto e nada suave de alfabetização não serve ao país

Marcos Aurélio Ruy, em São Paulo
Marcos Aurélio Ruy, em São Paulo
Jornalista, assessor do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo

Uma citação recente do presidente Jair Bolsonaro dizendo sentir saudade da cartilha “Caminho Suave” está gerando um debate sobre o papel da educação num governo destruidor da educação pública.

Bolsonaro afirmou que “os livros hoje em dia, como regra, são um montão de amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo. Em falar em suavizar, estudei na cartilha ‘Caminho Suave’, você nunca esquece”.

A fala presidencial repete toda a sua performance como político e agora no cargo maior do país, contra a educação voltada para o desenvolvimento pleno do aluno. Além disso, o atual presidente se mostra visceralmente contra o saber, por isso, defende uma cartilha autoritária, ultrapassada e ineficiente no processo de aprendizagem do aluno”, afirma Marilene Betros, educadora e secretária de Políticas Educacionais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

Porque, “o processo de alfabetização vai além das habilidades motoras ou da percepção visual. Ele se passa, especialmente, nas hipóteses que a criança formula ao tentar associar as palavras que vê ao significado, e isso ocorre quando ela reflete sobre a escrita. A mera aquisição de habilidades mecânicas ajuda pouco na aprendizagem”, diz Isis Tavares, educadora e presidenta da CTB-AM.

Marilene conta que é justamente por isso que a utilização da cartilha “Caminho Suave” perdeu sentido. Depois de inovações trazidas por diversos estudiosos como Emília Ferreiro, Ana Teberosky e Paulo Freire (1921-1997), que se basearam em importantes teóricos como Jean Piaget (1896-1980), Lev Vygotsky (1896-1934) e Henri Wallon (1879-1962), para citar somente alguns, “a educação tornou-se um processo muito mais interativo, inclusivo e com o aluno no centro do processo de ensino-aprendizagem”.

A cartilha “Caminho Suave”, de Branca Alves de Lima (1911-2001), teve a sua primeira edição em 1948 e até hoje ainda é um dos livros didáticos mais vendidos do país e conta com 133 edições, informa a Edipro.

Estudiosos informam que entre os anos 1950 e anos 1990, estima-se que mais de 48 milhões de crianças foram alfabetizadas por essa cartilha. Utilizando o processo de “alfabetização por imagem” e repetição de sílabas.

“O problema consiste em que as crianças aprendiam a codificar e decodificar, e não a descobrir o mundo da literatura, dos jornais. Era como aprender uma tecnologia e não saber que uso fazer dela”, explica à BBC Brasil, Magda Soares, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

A cartilha foi excluída do Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação (MEC), em 1996. Justamente porque “os textos que não cumpriam uma outra função da alfabetização, que é a de introduzir a criança na cultura do escrito, textos como esses (a laranja é de Lili) não fazem parte da cultura do escrito, nem mesmo de livros de literatura infantil”, acentua Magda.

“A ‘Caminho Suave’ surgiu num contexto onde o analfabetismo atingia quase 60% da população e necessitava-se de um método mais rápido de se ensinar a ler, mas o problema é justamente que esse método não se mostrou eficiente porque ler é muito mais do que identificar códigos e imagens”, acentua Francisca Pereira da Rocha Seixas, secretária de Assuntos Educacionais da Apeoesp – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo e de Saúde da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação.

Para a doutora em psicologia, Anna Helena Altenfelder “antigamente se acreditava que, uma vez que a criança dominava o código, ela automaticamente lia e escrevia todos os gêneros de texto que circulam na sociedade: contos de fada, poemas, regras de jogo, receitas de bolo, textos científicos”. Mas, de acordo com ela, isso não acontece porque o cérebro humano quer superar limites e não ficar estigmatizado.

Porque com o surgimento do construtivismo o “professor passou a ser visto como mediador entre os saberes do aluno e o processo de aprendizagem, numa troca de conhecimento, levando o aluno a desenvolver a cognição e a emoção juntamente com o aprendizado, desenvolvendo seu raciocínio”, assinala Marilene.

Além disso, lembra Anna Helena, aquela “era uma época em que a escola era para muito poucos. E como era um país muito analfabeto, a pessoa que escrevia uma palavra e lia textos muito simples era considerada alfabetizada”.

“Como utilizar esse método”, questiona Francisca, “em pleno século 21 com a indústria 4.0 batendo à nossa porta?”, porque para “acompanhar a velocidade das novas tecnologias há a necessidade de muita criatividade e domínio das emoções com muita autonomia, processo que se inicia nos primeiros anos da escola”.

Isis reforça ainda que “a linguagem é fundamental para a existência humana e a linguagem é muito mais do que combinações de sons, letras e sílabas. Através da linguagem falada e escrita, expressamos sentimentos, desenvolvemos raciocínios, refletimos, comunicamos nossas reflexões, nos comunicamos e também nos distinguimos e nos aproximamos uns dos outros, ao contrário de um método baseado na repetição para decorado e não como alimento da criatividade”.

Para Vygotsky, as relações sociais são essenciais para o processo de aprendizado e “só se tem relação social com uma educação livre de amarras, inclusiva, voltada para o diálogo e a liberdade de pensamento e expressão, sem liberdade não há educação eficiente”, conclui Marilene. Se o que se deseja é a “formação de cidadãs e cidadãos, há que se educar conhecendo o passado, entendendo o presente e construindo o futuro com pessoas livres e autônomas”.


Texto em português do Brasil


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