O que será que tem nesse disco do Belchior, de 1976, que fez bater tão redondo nesse dois-mil-e-dezoito de meu deus? É que, presentemente, eu realmente não sei se posso me considerar um sujeito de sorte. E nem vocês.
Se em abril do ano passado nós perdemos o compositor cearense, aos 70 anos, nada mais natural que viesse à tona seus discos, suas canções, as lembranças daquele cara de bigode e camiseta listrada que misturava baião com Bob Dylan, sertão com Beatles, “Blackbird” com assum preto. Tão conveniente que até fizeram uma reedição em vinil do seu principal disco, o “Alucinação”.
O tal disco nasceu no mesmo ano em que o filme “Um Estranho no Ninho” vencia todas as cinco principais categorias do Oscar: melhor filme, ator, atriz, roteiro (adaptado) e direção.
E, bem… Belchior era exatamente isso. Um estranho no ninho de figurões da MPB.
Tanto que boa parte das pessoas só chega ao disco por duas faixas deste mesmo LP, mas muito mais conhecidos na voz de Elis Regina (“Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais”, no clássico “Falso Brilhante”, que figura na posição de número 36 na lista dos cem melhores discos da música brasileira que a Rolling Stone fez em 2007). As versões da Elis são muito mais populares que as de Belchior.
Então, como é que foi que “Alucinação” voltou aqui pra essa cabecinha de novo este ano?
“Tenho sangrado demais”
Rebelião no Pará e em Goiás, dezenas de mortos. A febre amarela se alastrando, um ex-presidente preso, intervenção federal (já pode chamar de “militar”, né colegas?), a execução da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco (aliás, quem matou a Marielle? Quem mandou matar o Freixo aí, amigo?), o incêndio e o desabamento do prédio no Largo do Paissandu, greve dos caminhoneiros (cêis lembram do Max Max Brasil?), a derrota – mais uma – na Copa do Mundo (tomamos três gols no ano todinho, dois justamente na derrota para a Bélgica), o Museu Nacional do Brasil em cinzas, o desgaste das eleições, a ressaca dessas eleições, o desespero dessas eleições.
Não sei você, mas eu tenho sangrado demais. O Brasil tem sangrado demais. E só me resta chorar para cachorro. Ano passado eu não morri, mas este ano… Este ano foi quase, Belchior!
“Amigo, eu me desesperava”
“Alucinação” é um disco passional até o talo. É cantado a duras penas, sabe? Fazendo das tripas, coração. Belchior imprime em cada pedacinho ali um pedido de ajuda, uma súplica por afago. Ele procura o “vai ficar tudo bem”, mas não acha nem a pau. Ele diz que tá se sentindo são e salvo e forte, mas que tem chorado pra cachorro. Suas narrativas concretistas são doloridas e cansadas, como se ele estivesse ainda tentando. O desespero era moda desde 1973 (data da primeira versão de “À palo seco”.
O blues e o folk que ele mescla bem com a música nordestina – com a mesma competência que o Clube da Esquina fez lá em Minas em 1972 – amplifica a sensação de melancolia mesmo na festividade. É gostoso, mas azedo. Tá legal, mas tá estranho. Tô indo, sim, não se pode parar. Mas pra onde estamos indo mesmo? Não te parece exatamente com esse punhado de meses que estamos vivendo?
“Sem parentes importantes”
“Alucinação” é um pedido exaltado por juventude, pela ideia de coisa nova, o efeito manada progressista que entenda que se ama demais o passado e não se vê que o novo sempre vem.
E, para além disso, o sentimento é de solidão constante que nos atinge no peito, mesmo com um mundaréu de gente correndo para o mesmo lado. A gente sabe que tem mais gente sofrendo com a gente, mas, de alguma maneira, fica difícil de se conectar às vezes.
E os violões de aço e as divagações vocais do cantor neste disco nos leva para estados de solitude e divagação ao melhor estilo Eddie Vedder em sua trilha linda para o “Na Natureza Selvagem”. Quer ver? Pega o final de “Como o Diabo Gosta”, lá pra 1min30, e escuta depois “Setting Forth” do disco do “Into The Wild” e compara os gritinhos, os pensamentos que remetem às paisagens inóspitas, poeira e vazio.
Pega a introdução e o miolo lá nos 2min22 de “Fotografia 3X4”e compara com o começozinho de “Far Behind”. Agora pega aquelas cenas lindas do filme do Sean Penn e coloca no lugar a nossa caatinga, a Zona da Mata, os Lençóis Maranhenses, a Urca, a madrugada na Avenida Paulista.
Tem a vontade de rir e de chorar, tudo junto e ao mesmo tempo. Uma carência de abraço, de dar e de receber, uma coisa boa, mas meio magoada, uma vontade, ainda que cansada, mas toda latente, todo o dia, o dia inteiro.
Por pior que tenha sido o ano, por mais que o futuro pareça envelopado em trevas, a gente tem a necessidade do desafogo, do respiro, da beleza pela beleza. E o Belchior sabe fazer isso. Suas músicas são lindas e convidativas. Penosas, mas generosas, expressivas, significativas… Suculentas mesmo.
Belchior sabe como poucos cortar a nossa carne, mas nos faz lembrar que somos latino-americanos. Mano Brown, sempre ele, depois veio nos dizer que somos latinos mesmo, mas apoiados por mais de cinquenta mil manos. Obrigado por lembrar disso, Brown.
Escutem o “Alucinação”. Vejam como vai bater bem demais, certinho demais no drama atual. Depois de ouvir, olha uma foto do Belchior, qualquer uma que tiver por aí na internet, e perceba como ele tem um sorriso bonito e acolhedor, mas seus olhos permanecem tristonhos.
A nossa vida é exatamente assim. Meio… agridoce. Né?
Escute a íntegra do disco:
Alucinação, de Belchior
por Jader Pires, Escritor. Largou a publicidade, a experiência de sete anos em um banco e foi escrever. Começou a ler livros depois dos vinte e teve que correr atrás do tempo perdido. Já lançou três livros: o Ela Prefere as Uvas Verdes e o Do Amor, de contos, e agora, lança o seu primeiro romance, Deserto Negro, já disponível para compra. | Texto original em português do Brasil
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