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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Portugal-Brasil: E depois do adeus

Com circularidade aproximada de uma década, Portugal e Brasil renovam oficialmente proclamações de amizade e até de irmandade ditadas pelo sangue, a língua e a História. Foi assim com Guterres e FHC, FHC e Sampaio, Lula e Sócrates e, agora, de novo Lula e Marcelo. Com Chico Buarque a ajudar, apesar da polémica e dos protestos, foi bonita a festa, pá!

A própria imprensa brasileira, em geral reservada na cobertura de visitas oficiais, deu destaque aos acontecimentos. O circunspecto Estado de São Paulo chegou até a glosar o velho tema dos laços ancestrais, descobrindo um novo: Marcelo seria um “Lula de direita” e Lula um “Marcelo de esquerda”, e diante da necessidade do Brasil reconstruir pontes com a UE, o brasileiro sempre poderia contar “com a ajuda de seu irmão português”.

O mesmo fizeram, por dever de ofício, os embaixadores respectivos, falando ambos – nos artigos da praxe – de uma “relação especial” que, a exemplo daquela que liga EUA e Inglaterra, também existiria entre os nossos dois países.

As imigrações, com os relacionamentos cruzados que geram e as pressões que exercem sobre os governos; os investimentos cá e lá, incluindo um ou outro projeto conjunto; as mudanças na legislação para facilitar residência, trabalho, circulação e aquisição de nacionalidade; o reconhecimento mútuo de alguns documentos oficiais e a procura de pontos de convergência nas diferenciadas agendas internacionais – tudo isto, trabalhado de forma pragmática e esforçada pelas diplomacias respectivas, tem contribuído para maior aproximação efetiva.

Ricardo Stuckert

Mas estes avanços estão ainda longe de poder configurar uma amizade e uma irmandade inquestionáveis. Durante muito tempo, essas proclamações não passaram, aliás, de retórica vazia. Se hoje há maior aproximação, isso deve-se em boa parte ao novo olhar com que o Brasil, liberto da ditadura militar, passou a encarar Portugal a partir da nossa integração europeia, deixando para trás o estigma do isolamento e do atraso. Brasília não precisa de Lisboa para chegar a Bruxelas, mas ter mão amiga que ajude a circular pelos labirintos europeus não é coisa de somenos.

Ainda assim, apesar dos avanços, permanece entre nós uma sombra não assumida, quase tabu, que nos impede de ir mais longe e torna o relacionamento bilateral, na expressão do Prof. Amado Cervo, da UnB, uma “parceria inconclusa”.

Essa sombra, esse estranhamento, reporta ao facto da nacionalidade brasileira ter sido fundada com base numa ideologia antilusitana fomentada pelos círculos dirigentes brasileiros de origem portuguesa para acentuar a diferença e justificar a separação.

Na transição do século XIX para o XX, esse antilusitanismo de base ressentida acentuou-se com a imigração em massa para o Brasil de nacionais de outras origens, a qual diluiu muito a esmagadora predominância portuguesa existente até aí. E com o advento da República, na vertente jacobina dos primeiros anos, o português tornou-se mesmo o inimigo a abater ou expulsar, já que nos grandes centros, em particular no Rio, o imigrante lusitano era, pela disponibilidade para o sacrifício e os apoios com que contava, indesejável fator de concorrência no mercado de trabalho. Antônio Torres chegou a escrever: “O português é o nosso mais tenaz inimigo” (!).

A Semana de Arte Moderna de 1922 – um século depois da independência – ficaria também a assinalar, no plano simbólico, o afastamento cada vez maior em relação às raízes portuguesas. A partir daí e durante mais de uma década, os intelectuais brasileiros acentuam repetidamente o afastamento em relação a Portugal. Graça Aranha escreve: “Em vez de tendermos para a unidade literária com Portugal, alarguemos a separação” e Mário de Andrade resume: “Quando me senti escrevendo brasileiro, primeiro que tudo pensei e estabeleci: Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz.”

Incessantemene repetida, a atitude antilusitana acabou por se implantar no sistema de ensino e nos media, dando origem a uma espécie de ideologia comum a todos os setores da sociedade brasileira, que persiste até hoje e tende continuamente a menosprezar a herança lusitana como se ela não fizesse parte intrínseca da identidade brasileira. É isso que explica que chegue a haver, no Brasil, gente que não associe a língua que fala com o país que somos.

Já em 1940, Serafim Leite pedia, no Congresso Luso-Brasileiro de História, que a exemplo do que o Brasil fizera com a Argentina, também Portugal e Brasil deveriam rever os manuais escolares por forma a evitar textos “susceptíveis de criar desamor entre uma e outra nação”. Jorge de Sena voltaria a falar nisso nos anos 60, com o mesmo insucesso. Hoje, não há xenofobia antilusitana no Brasil – o nosso país é visto com simpatia, mas continua a haver estranhamento.

Esta realidade, que em nome da amizade e por pudor raramente se refere e se recalca, coloca dois desafios: a Portugal, a necessidade de defender, pela informação persistente – através de uma RTP-Brasil, por exemplo – o seu imenso património histórico e cultural em terras de Vera Cruz, subtraindo-o à voragem antropofágica de que é objeto pela erosão da memória; ao Brasil, a coragem de ressignificar esse passado, integrando finalmente, em vez de rejeitar, a herança portuguesa no complexo âmago da sua própria identidade imaginada, no “exercício humilde de dar ao luso o que é do luso” como disse – remando contra a maré – o poeta Álvares de Azevedo.

Para que tal pudesse acontecer, o nosso país teria, concomitantemente, de reconhecer o que houve de desumano no seu passado colonial e o Brasil de aceitar o valor da herança deixada por Portugal, “que a ninguém é dado branquear ou rasurar a baixo preço” (Eduardo Lourenço): um país imenso, unificado pela língua que reparte ainda hoje conosco, apesar de todas as diferenças, uma alma comum.

E quiçá encontrar, juntos, na semente da opressão – como queria o governador português Mathias de Albuquerque, do Fado Tropical – “a raiz de uma árvore de fraternidade, cujos ramos cheguem aos dois lados do Atlântico”. Então sim, poder-se-ia falar, com toda a propriedade, de uma relação especial.

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