A Amnistia Internacional Portugal vem, à luz do relatório publicado pelo Comité para a Prevenção da Tortura e Tratamentos Desumanos do Conselho da Europa (CPT), pedir às autoridades competentes e da tutela que tornem a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) num órgão independente e com maiores poderes investigatórios, e solicita que os dados relativos à sua actividade sejam divulgados de forma transparente e em tempo útil.
A organização de direitos humanos pede à tutela que tanto os padrões das Nações Unidas como do Conselho da Europa sejam observados e implementados em todas as instituições com capacidade legal para acomodar pessoas privadas da sua liberdade.
Dia 22 de Fevereiro a Amnistia Internacional publicou o seu relatório anual sobre a situação do estado dos direitos humanos no mundo. Saúda agora a publicação do relatório da visita periódica a Portugal, que teve lugar em 2016. O conteúdo, porém, não pode deixar ninguém satisfeito, uma vez que põe a nu realidades que a Amnistia Internacional denuncia nos seus relatórios anuais do estado dos direitos humanos, pelo menos desde 1965.
O facto de as condições das prisões e a violência policial serem presença recorrente há décadas nos relatórios da Amnistia Internacional é indicador de que estes são um problema estrutural e que as respostas que têm sido dadas, em cumprimentos das obrigações assumidas pelo Estado português, não têm sido as suficientes. Este não é um tema de 2016, nem mesmo desta década. São problemas transversais, que sobreviveram inclusive a alterações de regimes políticos. Merecem, por isso, um estudo e um debate profundo, sólido e inclusivo de todos os actores. O relatório do CPT é um passo importante nessa direcção.
O artigo 1.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) contempla a obrigação de os Estados assegurarem a todas as pessoas da sua jurisdição o usufruto dos direitos previstos. É desta obrigação que resulta não só a proibição do uso de tortura e tratamentos degradantes (artigo 3.º CEDH), cuja implementação o CPT monitoriza, como a proibição do abuso de direito nas limitações ao exercício dos direitos plasmados na convenção (artigos 17.º e 18.º CEDH).
Assim, as regras internas que regulam a actuação das forças de segurança assim como as condições em que é mantido quem é privado, legalmente, da sua liberdade têm de obedecer a princípios básicos de respeito pela dignidade da pessoa humana.
Acresce que todos os agentes de segurança, sejam agentes das forças policiais ou guardas prisionais, estão revestidos de uma legitimidade que lhes confere autoridade para usar a força, podendo esta ser de natureza letal, desde que reunidas as condições estabelecidas por lei. Esta legitimidade não pode ser entendida por nenhum agente como um livre-trânsito para violar direitos humanos, seja na forma de actos de violência verbal discriminatória, seja na forma de actos de violência física.
Inversamente, esta legitimidade traduz-se em obrigações especiais de conduta e observância de regras que estão em vigor para evitar atropelos aos direitos dos cidadãos e para tornar legítima a realização do poder de autoridade do Estado. É na firme crença neste dever público que as instituições visadas no relatório foram criadas e estão organizadas.
Há três princípios básicos que os agentes de segurança devem observar na sua conduta, a todo o tempo: necessidade, proporcionalidade e legalidade. Foi a monitorização destes princípios básicos, e a capacidade de resposta das instituições quando são desrespeitados, que o CPT pretendeu averiguar na vista que realizou a várias esquadras, estabelecimentos prisionais, e instituições psiquiátricas.
Publicado o relatório do CPT, a Amnistia Internacional Portugal vem, uma vez mais, requerer que Portugal assuma as obrigações a que se comprometeu perante os tratados internacionais de que é parte, nomeadamente a CEDH, e que integram o direito português por força do artigo 8.º da Constituição da República.
Em concreto, a Amnistia Internacional Portugal, recordando que as matérias de uso excessivo da força e condições prisionais são recorrentes desde a década de 1960 nos relatórios da organização sobre Portugal, defende a criação de uma entidade independente e externa ao Ministério da Administração Interna (MAI) para investigar as situações de denúncias de recurso a força excessiva, juntando a sua voz à voz do CPT nesta matéria.
Acreditando que os casos de violência policial, física e verbal, não reflectem, de todo, a natureza das instituições das forças de segurança, composta na maioria por agentes profissionais e competentes, a Amnistia Internacional entende que transformar a IGAI num órgão independente seria um importante contributo para garantir pleno distanciamento às investigações. Ficariam assim protegidas as próprias forças de segurança de suspeições indevidas, mantendo a sua credibilidade. Assim, a Amnistia Internacional Portugal solicita à tutela que se pronuncie expressa e claramente sobre a criação desta entidade independente e externa ao MAI.
A Amnistia Internacional relembra também a necessidade de as investigações da IGAI se fundamentarem nos princípios internacionais a que Portugal está vinculado sobre o uso da força, designadamente os Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei e os padrões europeus sobre actuação policial. Em uníssono com as preocupações levantadas pelo retrato desenhado no relatório do CPT, a Amnistia Internacional realça a importância de a tutela prestar informações sobre a quantidade de processos de queixas abertos no Serviço de Auditoria e Inspecção da Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e inquéritos abertos pela IGAI relativos a maus-tratos, tortura ou tratamentos degradantes e discriminação. Estes dados são reunidos anualmente pelo Governo e prestados ao Comité de Prevenção da Tortura do Conselho da Europa, entre outros organismos supranacionais, devendo igualmente ser disponibilizados à sociedade civil.
A Amnistia Internacional recorda ainda a Recomendação que a IGAI enviou para todas as forças de segurança, em Dezembro de 2017, a relembrar as regras aplicáveis à identificação e detenção de pessoas, alertando para o facto de que uma pessoa se encontrar num local considerado sensível não é justificação bastante para se proceder à identificação e detenção dessa pessoa, sem que haja indícios fortes da prática de delito. A Amnistia Internacional Portugal indaga a tutela sobre as motivações por trás da necessidade da publicação de tal recomendação da IGAI, solicitando à mesma esclarecimentos sobre possíveis tendências de actuação policial com motivos de discriminação étnica e racial (prática conhecida como racial profiling).
Preocupada com as alegações de uso excessivo, desnecessário, ou desadequado da força por parte de alguns agentes de segurança que suscitam questões sobre a sua conduta, a Amnistia Internacional Portugal informa que, entre 2016 e a data presente, recebeu 72 casos individuais sobre condições nas prisões e violência policial.
Perante as situações individuais descritas no relatório do CPT e o teor das comunicações que nos chegam, solicitamos à tutela que publicite que inquéritos foram abertos e as conclusões desses inquéritos abertos pela IGAI e pelo Serviço de Auditoria e Inspecção da Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, e igualmente que providencie explicações sobre a legitimidade do recurso à força, quando entenda que assim se procedeu. Nestes casos, pedimos ainda que sejam prestados esclarecimentos relativos ao cumprimento dos princípios internacionais sobre o uso da força pelos responsáveis pela aplicação da lei e das regras mínimas para o tratamento dos reclusos, nomeadamente se houve adequação e proporcionalidade e se a actuação se pautou por causar o “mínimo de danos” possível nos casos em concreto.
Finalmente, a Amnistia Internacional Portugal recorda que o uso de força pelas forças de segurança portuguesas constou das recomendações que a Amnistia Internacional apresentou ao Estado português por ocasião da Revisão Periódica Universal nas Nações Unidas, em 2014, e também foi consistentemente referido nos Relatórios Anuais da Amnistia Internacional sobre o estado de direitos humanos em Portugal com casos concretos respeitantes aos anos de 2016, de 2015, e de 2014.
Lembramos ainda que o relatório do CPT vem de uma visita feita a Portugal num período em que Portugal cumpria mandato como membro do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Este facto torna mais premente a acção de Portugal no que toca ao cumprimento das obrigações decorrentes do direito internacional dos direitos humanos, nomeadamente o primado da lei em todas as circunstâncias pelos agentes do Estado.
A Amnistia Internacional pede ainda que Portugal trabalhe seriamente para que os temas das condições das prisões e da violência policial deixem de ser tradição nos relatórios sobre o estado dos direitos humanos em Portugal.
Fonte: Amnistia Internacional