A tese da lavandaria avançada pela candidata presidencial Ana Gomes é uma fraude e é ela mesma uma tentativa de branquear a apropriação privada dos bens públicos portugueses
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Um sistema político-financeiro decadente
Nos últimos doze anos a quase totalidade da banca portuguesa foi salva da falência pelo erário público, fazendo de Portugal um dos países mais endividados do mundo, sem que isso tenha levado ao apuramento de responsabilidades judiciais, políticas ou menos ainda se tenham tomado quaisquer medidas para reformar o sistema político-financeiro que conduziu a esta situação.
As únicas entidades caídas em desgraça foram-no como fruto de circunstâncias excepcionais. Ricardo Espírito Santo caiu porque o Banco Central Europeu ordenou a sua queda, não porque qualquer político português o tenha feito cair; Duarte Lima está na prisão mais por ser suspeito em matéria de assassínio do que pelo desvio de poder; Sócrates ou Vara foram sancionados mais pelo atrevimento – são tidos como arrivistas na oligarquia – do que pelo que fizeram; Isabel dos Santos e o seu grupo cai agora por guerras que ultrapassam o nosso país.
O sistema político-financeiro português está minado por conflitos de interesse permanentes e avalização da defesa de interesses ilegítimos em nome de ‘diplomacia económica’, ‘promoção do investimento’, privacidade ou qualquer outro chavão do género.
Não se trata somente de Portugal, havendo por todo o mundo os mesmos sintomas de compadrio político-financeiro; em países menos desenvolvidos de forma mais óbvia, em países mais desenvolvidos de forma mais sofisticada e menos aparente.
A queda do império soviético e a adaptação dos comunismos e para-comunismos sobreviventes às normas do ganho sem limites levaram o nosso mundo a considerar que não precisava de reforma, de considerável reforço das separações de poderes ou de controlos democráticos da liberdade de circulação de capitais; essa liberdade de circulação de capitais sendo transformada em primeiro mandamento da nova ordem mundial.
Penso por isso que sem uma profunda reforma do sistema político-financeiro que nos rege – uma reforma do Euro no domínio europeu – não teremos solução sólida e duradoura à nossa frente.
Posto isto, acima dos desvios ou roubos descarados, os principais jogadores são os que têm dimensão geopolítica. A título de exemplo, na actual campanha montada sobre ‘Isabel dos Santos’ ninguém ainda colocou a questão decisiva: onde para a República Popular da China?
Como sabemos, Angola, e nomeadamente a SONANGOL, foi uma das vias utilizadas pela RPC para tomar conta do nosso país, no caso em apreço, da principal petrolífera portuguesa. Se Isabel dos Santos limpou a conta da SONANGOL assim que foi demitida, como terá sido visto isso na RPC?
No meio de toda a informação requentada apresentada como fruto de uma aturada investigação de ‘jornalistas’, na nauseante hipocrisia das autoridades portuguesas, a única questão relevante para entendermos o que se passa foi assim passada em branco.
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Os interesses que se escondem por trás dos demagogos
É da praxe ouvir como resposta a estas críticas que se está a pôr em causa o sistema democrático ou a dar força ao populismo, tentando assim os nossos dirigentes inverter os termos do problema, como se não fossem eles os responsáveis por abrir a porta aos demagogos.
Depois de várias partidas falhadas, temos agora o Chega de André Ventura e a campanha presidencial de Ana Gomes a querer manipular o descontentamento para os seus fins inconfessáveis, a segunda notoriamente mais perigosa do que o primeiro.
A investigação apresentada como independente e feita apenas por um consórcio de jornalistas – transformada em filme promocional da campanha eleitoral da Dr.ª Ana Gomes – menoriza o papel central da RP da China em Angola, que está em evidência, por exemplo, no mais recente dossier independente realizado sobre a matéria (data de Dezembro de 2019).
A guerra familiar entre a sobrinha (Isabel dos Santos) e o tio (Manuel Vicente); a exposição pública portuguesa dos protagonistas; as profundas mas complexas relações históricas e presentes luso-angolanas tornam propícia a transformação desta história numa telenovela que enche os olhos e ouvidos dos cidadãos, impedindo-os de procurar entender quem são os principais jogadores e, mais importante do que isso, se estes não estão por trás dos pretensos justiceiros.
O papel estratégico essencial de Angola em Portugal foi o de servir de intermediário à penetração chinesa e, numa altura em que começa o ambicioso programa de privatização anunciado pelas autoridades angolanas, esse papel tenderá a ser maior. O romance ‘Isabel dos Santos’ deve ser assim lido nessa perspectiva.
A ideia de que ‘a elite angolana transformou Portugal numa lavandaria’ pode exprimir a visão de um angolano preocupado com o desvio do dinheiro que deveria servir para o desenvolvimento do seu país, mas a sua transformação em doutrina pela elite portuguesa não é de forma alguma inocente, e visa inverter os termos da realidade.
Não foi Angola que colonizou Portugal, foi Portugal que colonizou Angola! Em matéria de adulteração de serviço público em interesse privado não há nada que a elite portuguesa tenha a aprender com a angolana, bem pelo contrário.
É demagógico ver Portugal como elemento acessório. Mesmo de acordo com a documentação da ‘Luandaleaks’ podemos ver que a empresa acusada de receber o dinheiro da Sonangol no Dubai é gerida por uma portuguesa ex-quadro da ESCOM.
A ESCOM, lembre-se, foi a empresa do Grupo Espírito Santo onde foi arquitectado o negócio dos submarinos, que tinha uma ligação preferencial a Sam Pa – principal quadro chinês nas relações com Angola, caído em desgraça em 2015 – e que iniciou a ligação luso-venezuelana.
Como sabemos, no célebre apagão fiscal de quase dez mil milhões de euros, a maior parte é relativa à empresa petrolífera venezuelana. Seria aliás curial comparar os fluxos venezuelanos e angolanos na banca portuguesa para se entender onde estão os principais movimentos financeiros portugueses e a sua ligação com a bancarrota nacional, se em Angola ou na Venezuela.
Se Portugal se limitasse a ser uma lavandaria como nos pretende convencer a elite político-financeira-jornalística portuguesa, como seriam possível os monumentais prejuízos em que incorremos?
As lavandarias financeiras e ou fiscais – como na Europa, o Luxemburgo ou os Países Baixos – não estão na falência, contrariamente a Portugal. A tese da lavandaria avançada pela candidata presidencial Ana Gomes é uma fraude e é ela mesma uma tentativa de branquear a apropriação privada dos bens públicos portugueses.
A questão central é que dívida portuguesa não se pode dever ao lavar de dinheiro angolano, só se pode dever ao descaminho dado aos fundos portugueses.
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Construir uma alternativa política
Não creio que a alternativa política se possa fazer com a criação de novos partidos – e todos eles reproduzem em escala alargada os vícios dos velhos – e menos ainda através de qualquer impulso vindo das presentes máquinas partidárias ou da oligarquia político-financeiro-jornalística, ou ainda das várias burocracias associativas tidas como representando a sociedade civil.
A ilusão da pessoa providencial que chega ao poder e trata de tudo é isso mesmo, uma ilusão que leva à ditadura. Não é possível a reforma sem uma verdadeira sociedade civil – personalidades realmente independentes, bem formadas moral e civicamente e da sua capacidade para conseguir impor nas rodas do poder uma alternativa constitucional que se erga na base de dois princípios fundamentais:
- Reforço do sistema de controlos e equilíbrios. Tomo aqui a expressão americana em vez da europeia de ‘independência de poderes’ por esta última desvirtuar o que há de essencial. A independência de poderes sugere que estes devam ser independentes do povo, o que é o inverso do que se pretende, e interpreta-se também como a da completa exclusão das esferas de poder, o que também não é de todo o que se pretende.
A fonte de legitimidade de todo o poder – incluindo o judicial – terá de ser o mais alargada possível, nunca resumida a nenhuma corporação. A definição de poderes tem naturalmente de existir, mas nunca feita de tal forma que exclua as várias autoridades de se controlarem e equilibrarem mutuamente. A rigorosa e inteligente definição de mecanismos de controlo de conflitos de interesses é a peça essencial no sistema de controlos e equilíbrios.
Montesquieu falou de três poderes há mais de dois séculos. Hoje teremos algumas dezenas a ser considerados. Nunca devemos ter a ilusão de que permitir um sistema de equilíbrios e controlos é a chave mágica para resolver tudo. Esse sistema é apenas uma condição para que numa sociedade livre se possam controlar e reduzir os vícios sociais.
- A transparência. Criámos entre nós uma amálgama entre o que é a privacidade e o que é a ausência de transparência. Saber o que somos, de quem gostamos, o que dizemos, onde vamos o que pensamos é algo que só devemos partilhar se e como queremos.
O dinheiro não é algo privado, é uma matéria puramente social. Saber de onde nos vem o dinheiro que queremos utilizar para o que quer que seja é algo da esfera pública.
Penso que devem ser estabelecidos patamares mínimos, até onde se joga o nosso quotidiano, e outros acima dos quais se joga o destino da nossa sociedade, e isto incluindo mesmo a actividade económica. Se alguém faz um pequeno trabalho, aluga um quarto, vende os ovos das suas galinhas sem declarar, não creio que venha daí mal ao mundo. Se quem investe milhões em compras e transacções não explica qual o circuito do dinheiro que utiliza, creio que temos aqui um problema capital.
Tudo o que não seguir por esta via, tudo o que assentar em salvadores da pátria, medidas simplistas, focalização em uns para esconder o que se passa com outros, nada resolverá e tudo pode agravar.
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