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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Portugal e a «americanização» da Saúde

Jorge F Seabra
Jorge F Seabra
Médico, de Coimbra.

Os USA, gastam muito mais em Saúde do que a generalidade dos países desenvolvidos (OCDE 2017: USA – 17,2% PIB; Canada – 10,6%; França – 11%; Portugal – 8,9%; média OCDE – 9%).

No gasto per capita a diferença é ainda mais impressiva (2017 : USA – 9.892 dólares; Portugal – 2.734 dólares; OCDE média: 4.003 dólares).

A questão principal, contudo, é que os USA têm, apesar disso, piores resultados. Muito piores. Na realidade, a fama dos seus centros de excelência encobre uma realidade muito diferente  e triste quanto aos cuidados prestados à generalidade dos cidadãos.

Cerca de 35 milhões (10%) dos norte-americanos não tem qualquer protecção contra a doença e os apoios do “Medicaid” e “Medicare”, dirigidos aos pobres, são fracos e de má qualidade. Mesmo a tentativa de criar uma forma de assistência baseada num seguro de saúde mais abrangente, com o “Obamacare” (contestado por Trump), ainda deixa os USA a milhas de distância dos países que têm um verdadeiro serviço público de saúde.

Na verdade, todos os que dedicam alguma atenção aos indicadores das diversas organizações de Saúde no mundo sabem que os USA se situam numa linha recuada, contrastando com o peso da sua economia e a sua posição de superpotência global.

Essa dramática realidade é bem retratada em muitos filmes que podemos ver na nossa TV (como “John Q” de Cassevetes ou “Assalto em Wall Street” de Uwe Boll) traduzindo a revolta de famílias americanas levadas à ruína pela despesa com a doença, ou em documentários que analisam o falhanço e a desumanização do “sistema americano” de Saúde (que muitos nem consideram existir como sistema), como o premiado “Sicko”, de Michael Moore.

De facto, é perigoso estar doente nos USA. Os canadianos que vivem junto à fronteira (o Canadá tem um excelente sistema de saúde totalmente público) não se aventuram a irem aos Estados Unidos nem que seja apenas por uma tarde ou um dia, sem se assegurarem de  estarem bem protegidos em caso de desastre e mesmo assim tem havido problemas que deixam os mais azarados à beira da falência.

O jornal “The Guardian” de 16/1/18 relata o testemunho directo de um casal norte-americano da classe média, ambos com cursos universitários e bons empregos ligados à construção civil e ao comércio, com seguros de reforma e de saúde “abrangentes”, casa própria e dois automóveis, férias “ em destinos exóticos uma ou duas vezes por ano” que, por terem tido dois filhos gémeos prematuros que exigiram cuidados intensivos neonatais prolongados para sobreviverem, viram-se, sem terem nunca pensado nisso e “julgando-se preparados para tudo”, completamente arruinados tendo vendido tudo: casa, carros, mobília, seguros, gastando as poupanças e contraindo dívidas de cerca de meio milhão de dólares sem saberem se conseguiam salvar as crianças, lutando dia-a-dia para pagar as contas perdendo nisso também “ a auto-estima e a dignidade”. – “Eu era ingénua e não imaginava com que rapidez podíamos perder tudo” – nas palavras da mãe dos gémeos.

Esse é um chocante exemplo do que continua a acontecer nos USA, o país mais rico do mundo que gasta uma percentagem do PIB na Saúde e um valor per capita muito maior que os outros “países desenvolvidos” com resultados desastrosos que se repercutem ameaçadoramente, na vida das pessoas, mesmo nas que têm empregos estáveis e alguns recursos.

Felizmente, o exemplo referido no The Guardian seria impossível de acontecer no nosso país, onde a assistência neonatal é assegurada gratuitamente pelo serviço público de Saúde, com índices de mortalidade infantil que se situam entre os melhores do mundo, superando claramente os USA onde morrem o dobro das crianças (OCDE 2016: Portugal – 2.9/1000 nascimentos; USA – 6/1000).

Ora se os USA têm tão maus resultados e constituem o paradigma da privatização e “empresarialização” da Saúde, o seu modelo deveria ser apresentado como um exemplo a evitar, por deixar o cidadão isolado e dependente dos seus meios de defesa, precisamente quando adoece e se torna mais frágil.

Partindo muito de trás, após décadas de ditadura e com números próprios de um país pobre e subdesenvolvido, Portugal conseguiu, em cerca de duas dezenas de anos de implantação de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) universal e gratuito, alcançar o 12º lugar no ranking da Organização Mundial de Saúde de 2001, nos cuidados prestados aos seus cidadãos.

Muito à frente dos USA (35º) e de Inglaterra (18º) National Health Service (NHS), que lhe servira de modelo, já então corroído pelos vírus “americano” de empresarialização e privatização inoculados pelo neoliberalismo de Margaret Thatcher.

Poder-se-á pois achar estranho que sucessivos governos do nosso país tenham abandonado esse caminho que tão bons resultados estava a dar, para optar por um “sistema” mais privatizado e fragmentado, aproximando-o, cada vez mais, do modelo americano, exemplo do desperdício e do erro.

Claro que, nas últimas décadas, Portugal continuou a desenvolver-se em infra-estruturas e capacidade técnica. O país de hoje é, naturalmente, também na Saúde, diferente dos anos da viragem do século. Mas o ritmo de crescimento do SNS foi sendo travado pelas políticas de direita onde se inscreve a lei de Bases da Saúde de 1990 e leis avulsas de “empresarialização” dos hospitais (2002, 2003 e 2005), que ainda demoraram quase uma década a suster ou inverter o seu ímpeto.

Num autêntico “pacto de regime”, os sucessivos governos PS,PSD e CDS foram abrindo caminho à grande privada ligada aos maiores grupos financeiros, que rapidamente alargou a sua implantação e influência, apoiada pela transferência maciça de serviços e doentes do SNS, e pelas dificuldades criadas ao seu acesso, nomeadamente pelo custo dos transportes e das chamadas “taxas moderadoras”.

Simultaneamente, explodiram as campanhas mediáticas de desvalorização do serviço público e ganharam terreno os seguros privados de saúde (com benefícios fiscais e quase sempre obrigatórios para a obtenção de crédito), que hoje já cobrem mais de 2,5 milhões de portugueses, um quarto da população do país.

Esta gasta mais nessa duplicação de serviços, pagando, – para além do SNS, (financiado através do impostos) -, prémios de seguros e outros custos que saem directamente do seu bolso, como a saúde oral e os medicamentos. Quanto a esse dinheiro “out of pocket”, os portugueses também gastam mais do que qualquer outro cidadão europeu, ultrapassando um quarto de toda a despesa em Saúde (2015 – OCDE média: 18%; Portugal: 28%).

Com este panorama, a invocada insustentabilidade económica do SNS constitui apenas mais um falacioso argumento de quem – duplicando custos e gastando milhares de milhões em apoios à banca, às grandes empresas e a investimentos especulativos ou menos prioritários, ou oferecendo enormes somas em benefícios fiscais -, o quer ver reservado para os mais pobres e desprotegidos, como mero sistema supletivo, à moda da “América”.

O crescimento acelerado dos lucros dos maiores grupos privados através de PPPs e outros contratos e “outsourcings”, mostra que há dinheiro que chegue para a Saúde, mas muito passou a ser canalizado para fora do serviço público.

Em dez anos (de 2005 a 2015) e segundo o INE, o SNS perdeu cerca de 4.500 camas enquanto o sector privado aumentou 2.300, também elas substancialmente financiadas, directa ou indirectamente, com dinheiros públicos.

51% dos gastos dos hospitais privados foram financiados com dinheiros públicos, segundo o “Jornal Económico” de 14-2-18, citando dados recentes também do INE.

Nos Cuidados Primários de proximidade, o número de extensões dos Centros de Saúde diminuiu numa só década (de 2000 a 2011), de cerca de 2000 para 1200, afastando as populações do primeiro acesso ao SNS.

Em 2017, e segundo um estudo da Universidade Nova de Lisboa (Nova IMS), cerca de 11% dos doentes medicados não concretizou a compra dos medicamentos prescritos, por não ter dinheiro (em 2016 esse valor ainda tinha sido mais alto – cerca de 12%). Em 60% dos casos, a falha de tratamento esteve ligada a doenças crónicas com medicação prolongada.

Aos poucos, instalou-se a ideia de que quem tem possibilidade de pagar deve procurar os serviços privados, porque o SNS não dá uma resposta atempada e eficaz, explorando, nos media, as suas reais ou empoladas deficiências, tantas vezes dolosamente criadas pelos que o dizem defender, diminuindo a sua proximidade e agravando a sua “administrativização” e o seu subfinanciamento.

Nesse aspecto, os partidos que, ao longo das últimas décadas, foram responsáveis pela degradação do SNS (PS,PSD e CDS) comportam-se como o filho que, depois de assassinar os pais, lamenta o facto de ser órfão.

A conspurcação do serviço público por condicionamentos só justificados por razões ideológicas ­- como a contratação de empresas de trabalho temporário para suprir os buracos causados pelos “cortes” nos recursos humanos e financeiros, ou a imposição de uma filosofia de gestão baseada numa contabilidade “comercial” em busca de um “lucro” virtual, um conceito estranho num serviço público -, fizeram com que o SNS, ao contrário do propagandeado, deixasse de estar “centrado no doente”.

Forçado a abandonar essa sua matriz inicial, o serviço público e os seus serviços e departamentos, começaram a ser obsessivamente orientados para conseguirem obter financiamento através do ganho pago por cada acto efectuado, macaqueando a pior lógica “americana” do negócio privado da Saúde.

Essa política traduziu-se na burocratização do seu quotidiano, na redução da remuneração, no desprezo pelas prioridades clínicas, no trabalho extraordinário forçado e mal pago e na frustração das expectativas de realização profissional e de estabilidade com progressão na carreira, a que se junta a falta de segurança na reforma.

O ataque ao SNS (que só recebe cerca de metade dos gastos públicos em Saúde) repercutiu-se também negativamente no ensino, formação contínua e investigação, sacrificados na fogueira de uma falseada “produtividade” atafulhada de estatísticas criativas, e pela dolosa desnatação do SNS causada pela falta de estímulo dos seus profissionais devido à progressiva degradação das condições de trabalho.

Também o abuso da dedicação ao trabalho dos profissionais e o seu estado de esgotamento (“burn out”), é bem conhecido:

Um trabalho do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em 2016, abrangendo 9.176 médicos, mostrou que 66,1% sofriam de exaustão emocional, dois terços dos quais num patamar elevado.

Também numa investigação publicada na revista Acta Médica Portuguesa em Janeiro de 2016, Marôco e col., encontraram 21,6% dos profissionais num estado moderado de esgotamento e 47,8% num estado de burn-out elevado, na graduação do Masrlash Burnout Inventory.

Apesar desta evidência e dos repetidos protestos e greves dos profissionais da saúde contra a continuada política de agressão ao SNS e aos seus profissionais, a Tutela tem continuado a assobiar para o lado, parecendo ignorar uma situação de risco para todos.

Neste contexto, a discussão da lei de Bases da Saúde, irá opor, com algumas pequenas nuances, as duas concepções de organização: o modelo liberal e privatizador norte-americano que consome quase o dobro dos “países civilizados” com resultados desastrosos, e o de um SNS “socializado”, prestador público universal, gratuito e solidário de cuidados de saúde, como o que resultou da Lei de Bases de 79 (lei Arnaut) e possibilitou o salto que Portugal deu nos indicadores da Saúde, nomeadamente, nas suas décadas iniciais.

Será de sublinhar, que a que a lei de bases de 90 (actualmente em vigor), não justifica a extensão da agressão feita ao SNS, nem impõe muitas das opções gravosas tomadas pelos sucessivos governos de antes, durante e pós troika, a que o seu texto não obriga.

Não foi por causa da lei de Bases de 90 que o governo PSD-CDS deixou de fornecer próteses e ortóteses às crianças ou adultos com deformidades ou paralisias, embora omita a referência a esse direito que estava explícito na lei de 1979. Não foi por causa da lei de Bases de 90, que o actual governo PS atrasou e limitou o concurso para centenas de jovens médicos especialistas, estimulando à sua saída do SNS.

E se é verdade que a Lei Base de 90 abriu a porta a retrocessos mais estratégicos, como encerramentos e fusões de unidades hospitalares ou a contratação de ruinosas parcerias público-privadas (PPP’s), nada obrigava a que os governos, nomeadamente os do PS, levassem a cabo essa política privatizadora e “americanizada” da Saúde.

De resto, nenhuma força coerente de esquerda discute as vantagens de haver uma lei de bases que limite a possibilidade de essas políticas neoliberais continuarem a ser implementadas e assegurasse o alargamento do âmbito e qualidade do SNS como serviço primordial e público, prestador de cuidados de saúde gratuitos a toda a população, aprofundando o seu espírito solidário e universal definido na Constituição.

Mas para isso é necessário que existam condições políticas para a aprovar. E fazer uma soma aritmética juntando os deputados do PS aos do BE e do PCP para aprovar na Assembleia da República uma lei de bases mais progressista e evoluída, pode constituir uma perigosa ilusão, já que a actual política governamental do PS e declarações de alguns dos seus “notáveis”, não se orientam nessa direcção.

Não convém, por isso, confundir desejos com realidades, embora uma reconstrução das votações do velho “arco do poder” – já proposta pelo PSD e CDS e por personalidades destacadas do PS -, colida de frente com a esperança despertada pelo acordo de viabilização parlamentar do governo PS com os partidos à sua esquerda e constitua uma traição ao desejo expresso pelo eleitorado de uma reversão dessa política.

Na realidade, apesar da intensa propaganda dos benefícios da gestão privada feita pela comunicação social dominante, continua a ser difícil convencer os cidadãos de que é com os imensos lucros desviados para os bolsos dos donos das grandes empresas, que se prestam, com menos custos e respeito pelos direitos dos trabalhadores, melhores cuidados de saúde a toda a população.

Enfim, o que pôr à frente? A solidariedade de todos na doença com justa remuneração e melhoria das condições de trabalho dos profissionais da Saúde ou o sofrimento e a ruína dos mais frágeis para enriquecimento dos grandes accionistas?

Seguramente, todos os portugueses que compreendem o que está em jogo sabem bem qual deve ser a resposta.

 

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