Onze anos depois da investigação sobre os incêndios de 2003 a 2005, Pedro Almeida Vieira diz que “perdeu-se uma década a investir num sistema de combate pseudo-voluntário, ineficaz e assente numa organização caótica”.
Pedro Almeida Vieira, engenheiro biofísico e escritor, em discurso directo, sem filtro.
Jornal Tornado: «Nas últimas duas décadas e meia, os incêndios devastaram uma extensão equivalente a um terço do território de Portugal. Um ritmo que deixa “invejosas” as chamas que desflorestam a Amazónia. Nestes ataques, o saldo tem sido tenebroso: dezenas de mortos, milhares de casas calcinadas e a destruição de pinhais, eucaliptais e montados de sobro e azinho, com efeitos sociais e económicos aterradores. Jamais na longa História de Portugal, de guerras intermináveis e batalhas sanguinárias, um outro inimigo conseguiu o prodígio de tão rápida, fácil e dilacerante destruição”. Esta é a sinopse do seu livro “Portugal: O Vermelho e o Negro” publicado em 2006? Onze anos depois, o que mudou?
Pedro Almeida Vieira: Escrevi o livro no rescaldo de um triénio fatídico (2003-2005), em que no total ardeu cerca de um milhão de hectares, ou seja, ardeu 11 por cento do País. Cerca de um terço da área florestal foi afectada e não era previsível que os anos seguintes fossem muito fustigados pelo fogo. Nessa altura perdeu-se uma oportunidade de fazer diferente. Se a década seguinte a 2005 registou um decréscimo na área média ardida, não foi por via de qualquer mudança estrutural. No ano passado já tinham sido dados alguns sinais de que a situação começava a torna-se crítica, pois ardeu cerca de 160 mil hectares. Mas as pessoas têm memória curta e já nem se lembram que também em 2003 morreram 21 pessoas em vários incêndios. Enfim, este ano mostrou mais uma vez, e de forma muito mais dolorosa, que se não se arrepiar caminho, as mortes vão repetir-se, e as que lamentavelmente ocorreram este ano não vão mudar nada. Ficarão apenas para a História. Tal como as que aconteceram em Junho e não serviram para nada relativamente às deste Outubro.
O que é urgente aprender com as duas mais recentes catástrofes, onde em Junho morreram 64 pessoas, mais de 200 ficaram feridas, e meio milhar de habitações foram afectadas e quatro meses depois registaram-se mais 44 mortos e 70 feridos?
Perdeu-se uma década sem nada investir na prevenção e na correcta gestão e a investir num sistema de combate pseudo-voluntário, ineficaz, assente numa organização caótica. Isto está agora a pagar-se caro. Tivemos dois fenómenos extremos, talvez o deste Outubro único, mas mostram um padrão preocupante: tanto em Pedrogão como os fogos de 15 de Outubro registaram-se fora do Verão sazonal, fora da dita época normal dos fogos. Do ponto de vista político não houve discernimento. Não se pode já montar um sistema de combate de forma burocrática. Não se pode dizer a um fogo que só está autorizado a aparecer entre 1 de Julho e 30 de Setembro. Os fogos não cumprem a lei.
Aponta responsabilidades políticas?
Quando tivemos Pedrogão em Junho, quando vivemos um Verão particularmente seco com fogos a surgirem em vagas, foi uma péssima decisão política diminuir o contingente de combate. Num sistema profissional não haveria essa situação. Num sistema assente em voluntariado há. Isto saiu caro. O fenómeno de 15 de Outubro foi extremo, mas eu também nunca tinha visto tantos fogos a lavrarem há várias horas em número tão elevado, o que significa que a primeira intervenção, que até atinge níveis bastante razoáveis no Verão, desta vez falhou rotundamente. No domingo de 15 de Outubro assistimos a mais de 150 fogos em simultâneo. Não estou a falar em ignições. Quando se diz que houve 500 ignições, geralmente só 10% ou menos ultrapassam um hectare. Num mau dia de Verão vêem-se uma dezena ou duas de incêndios com alguma dimensão. Nunca 150. Isso foi um absurdo.
O facto de a época crítica dos incêndios (fase “Charlie”) ter terminado a 30 de Setembro foi então um erro grave?
Claramente. Numa forma dura, crua e cruel, só não vê quem não quer. E embora julgue que se deva estudar com detalhe o fenómeno meteorológico do dia 15, e como ele foi responsável pela dimensão absolutamente extraordinária, penso que há uma conclusão essencial a retirar já: independentemente de tudo que se quiser fazer no futuro em termos de estruturarmos uma floresta sustentável, não vale a pena sequer avançarmos se não alterarmos de imediato o sistema de combate, articulando-o com trabalho de sapador. Profissionalizando tudo. Neste momento o fogo deve ser visto como um inimigo, e perante a iminência de sucessivas invasões de um inimigo cada vez mais forte e letal, temos é certo de criar fortalezas e castelos, mas se não conseguirmos suster a fúria enquanto estamos a construir os caboucos dessas fortalezas, então nem sequer vale a pena iniciar a obra. Caso contrário, o invasor destrói facilmente esses caboucos, de sorte que nunca chegamos sequer a ter alicerces, quanto mais fortalezas.
A política florestal é uma estratégia secundária, na sua opinião?
Temos de reforçar a capacidade de combate de forma imediata, até podemos fazer isso em articulação com a política florestal. É fundamental termos um corpo de intervenção que possa combater os fogos de forma permanente e articulado, bem treinado e organizado. Actualmente, um grande fogo que tenha 500 bombeiros no terreno é sintoma de que está caótico. É impossível coordenar tantos homens, tendo em conta que não pertencem a um corpo único, aparecem no teatro das operações a conta-gotas e provenientes de corporações distintas. Como é que se coordena em Vouzela corporações que chegam de Paço de Arcos, de Oeiras, de Cascais, de Mangualde ou de Évora? Há fogos que têm bombeiros de 50 ou mais corporações diferentes. É a confusão total! Temos de ter uma estrutura única de combate, um corpo profissional, que utiliza protocolos de ataque. E com a função de trabalho de sapador fora da época crítica.
Na sua opinião o que tem falhado é a coordenação e o combate?
Neste momento, apesar de defender várias medidas estruturais, estas não valem a pena sem antes se alterar a forma do combate aos fogos florestais. Veja-se o caso de Mação, que estava a implementar bons planos florestais depois de 2005, e acabou por arder tudo. É que o fogo começa sempre da mesma forma: pequeno. Quer um fogo posto quer um fogo resultante de negligência são controláveis e conseguem extinguir-se. Portanto, o que temos de evitar é ter fogos de tão grandes dimensões que se transformem num inferno completo, e isto só se consegue através de um combate eficaz, com trabalho de prevenção. Além disso, o que falha em Portugal, comparativamente a Espanha, e eu mostrei isso no meu livro, há mais de uma década, é também a eficácia no combate estendido. Ou seja, a probabilidade de um fogo que ultrapassa os 100 hectares de se mostrar depois incontrolável é muito elevado. Este ano tivemos 12 incêndios com mais de 10 mil hectares, dos quais dois com mais de 60 mil. Até ao ano 2000 só tínhamos tido um único incêndio com um pouco mais de 10 mil hectares.
O fogo parece continuar a ser encarado como uma fatalidade, qual a explicação para não se alterar nada?
O lóbi dos bombeiros pseudo-voluntários está cada vez mais forte. Infelizmente, estamos cheios de heróis mas que estão sempre a perder.
Como assim?
Não concebo que se considere uma vitória depois de terem ardido milhares de hectares durante vários dias, ou quando as condições meteorológicas são favoráveis a tal ponto que até chove e o fogo se extingue, ou quando não há mais nada para arder. A maior parte das vezes é o fogo que domina os bombeiros, não o contrário. Em Portugal, o melhor bombeiro é o São Pedro. Eu posso glorificar o empenho, a abnegação dos bombeiros, mas isso não chega. A realidade é esta: os resultados são fracos.
Mas eles dependem de uma estrutura?
De várias estruturas. Até podem ser muitos talentosos, por isso é que defendo a sua profissionalização. Com treino, com melhor preparação técnica e teórica serão melhores, muito melhores. O sistema de combate aos incêndios florestais deve ser exclusivo dos sapadores profissionais, deixando aos bombeiros voluntários a protecção das casas e outros trabalhos sociais.
Os erros que aponta têm cor partidária?
Não, já analisei a área ardida em função do partido que estava no Governo é e praticamente igual. Talvez agora um pouco mais desfavorável ao PS por causa do dia 15 de Outubro em que ardeu, em menos de 24 horas, cerca de 300 mil hectares. Mas podia ter acontecido a qualquer Governo do PSD. Não tem nada a ver com questões ideológicas. Neste aspecto, quem nos tem governado tem olhado sempre para a floresta e para o combate com os mesmos olhos.
Trata-se de uma questão de verbas?
Aquilo que custaria um corpo profissional de bombeiros é incomensuravelmente irrisório face aos custos sociais relacionados com os fogos. Para além do mais, os bombeiros voluntários custam bastante dinheiro, e os montantes distribuídos pelo Estado às corporações de bombeiros estão muitas vezes envoltos num manto nada transparente.
“As pessoas têm memória curta e já nem se lembram que também em 2003 morreram 21 pessoas em vários incêndios. Enfim, este ano mostrou mais uma vez, e de forma muito mais dolorosa, que se não se arrepiar caminho, as mortes vão repetir-se, e as que lamentavelmente ocorreram este ano não vão mudar nada”
“Há fogos que têm bombeiros de 50 ou mais corporações diferentes. É a confusão total! Temos de ter uma estrutura única de combate, um corpo profissional, que utiliza protocolos de ataque. E com a função de trabalho de sapador fora da época crítica”
“O lóbi dos bombeiros pseudo-voluntários está cada vez mais forte. Infelizmente, estamos cheios de heróis mas que estão sempre a perder”
“Aquilo que custaria um corpo profissional de bombeiros é incomensuravelmente irrisório face aos custos sociais relacionados com os fogos”