Há entendimento à esquerda, em Portugal, para viabilizar um governo do Partido Socialista para os próximos quatro anos.
Depois do Bloco de Esquerda/BE, também o Partido Comunista Português/PCP, o mais renitente, acabou por dar o seu consentimento, em decisão aprovada domingo pelo Comité Central reunido excepcionalmente em Lisboa com esse único ponto na agenda.
Com maioria no Parlamento, os partidos de esquerda estão assim em condições não só de aprovar, já hoje, uma moção de rejeição ao executivo da coligação de direita PSD/CDS liderado por Passos Coelho, como – e sobretudo – de apresentar ao Presidente da República uma alternativa credível, suficientemente sólida e com perspectiva de estabilidade.
Tendo sido essas as condições apresentadas de forma enfática e reiterada por Cavaco Silva, é agora expectável que o Presidente encarregue o líder socialista António Costa de formar governo.
Teoricamente, Cavaco – que sempre foi ostensivamente favorável à direita e a quem esta solução não agrada – ainda poderia manter o executivo de Passos Coelho em funções de mera gestão até à convocação de novas eleições legislativas (que só poderiam ter lugar daqui a mais de meio ano) ou, in extremis, hipótese mais remota, tentar formar um governo de iniciativa presidencial.
Qualquer dessas variantes comportaria, entretanto, riscos de muito maior incerteza e instabilidade, que é tudo o que Portugal – ainda no rescaldo de pesado resgate financeiro –menos precisa. Numa palavra, seria pior a emenda do que o soneto.
Os parceiros europeus, as instituições financeiras internacionais e os mercados sabem disso e é portanto provável que Cavaco se resigne e nomeie Costa para governar o país.
Temos assim em perspectiva a formação de um governo do PS sustentado no Parlamento pelos partidos à sua esquerda – uma reviravolta surpreendente na política portuguesa, impensável ainda há pouco mais de um mês.
MUDANÇA HISTÓRICA DE PARADIGMA
Desde que foi derrotada militarmente no esboço de guerra civil, em Novembro de 1975 – o Thermidor da Revolução dos Cravos – a esquerda à esquerda do PS estava até agora, confinada a um papel marginal na política portuguesa. Tinha existência legal e representação no Parlamento, mas impendia sobre ela uma capitis diminutio: estava-lhe vedada a participação ou até a mera influência na formação do governo, sendo-lhe apenas consentido gerir o poder local.
Nesse contexto interno favorável e no enquadramento da Guerra Fria, o Partido Social Democrata/PSD, de inspiração liberal, e o Partido Socialista/PS, de raíz social-democrata, criaram para seu exclusivo benefício o conceito de “arco da governação” que à partida excluía os extremos. Com uma ou outra excepção em benefício do Centro Democrático e Social/CDS, de extrema direita, a alternância no poder sempre se fez, nestes últimos 40 anos, dentro dessa amplitude limitada entre centro-direita e centro esquerda. A regra era, em termos populares – ora agora governas tu, ora agora governo eu, ora agora governas tu mais eu…
Num país já de si historicamente marcado pela Inquisição, a Contra-Reforma e Fátima, o radicalismo do Verão quente de 1975 deixou marcas que a extrema esquerda carrega até hoje: a ideia generalizada de que essa área política é estruturalmente demagógica e financeiramente irresponsável, tornando-a portanto inepta para governar. Na psicologia social reinante, a ela se atribuíam todas as faltas, ao mesmo tempo que à direita todas se desculpam – do nepotismo aos escândalos financeiros passando pela simples incompetência.
A tudo isso somava-se a cisão histórica ocorrida no movimento social-democrata europeu há um século atrás, agravada pela trágica experiência da ocupação soviética da Europa de Leste, que impedia a aproximação entre comunistas e socialistas. Era mais do que um anátema, era um dogma, um tabu.
Foi este paradigma que agora foi rompido, também em Portugal. Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da URSS, partidos comunistas já participaram de ou influenciaram os governos numa série de países europeus; mas nunca nada disso tinha até agora acontecido no “pequeno jardim à beira mar plantado.”
Com a inesperada aproximação aos partidos à sua esquerda, a nova liderança do PS não só rompeu o paradigma vigente na política portuguesa, como questionou também a tradição instituída de conceder a governação automaticamente ao partido mais votado. Mas isso só acontecia porque o diálogo estava fechado à esquerda. Ousando abrir essa porta, toda uma outra dinâmica passa a ser possível – para governar não basta ganhar as eleições, é preciso também assegurar a maioria no Parlamento.
Por tudo isto, não é para admirar o profundo desagrado da direita – que vê fugir-lhe um governo que já tinha por garantido –; os gritos alarmados de “golpe de estado” que alguns deixaram escapar; a surpresa – e até o desconforto, porque não ? – de parte do eleitorado que só aos poucos se foi apercebendo da mudança; os vaticínios de fracasso da esquerda formulados pelos colunistas de serviço e o espanto boquiaberto de quase todos.
Mas na realidade não há grande drama. Está apenas a acontecer em Portugal o que já é regra noutros países democráticos da Europa. Daí a crítica severa às veladas ameaças de Cavaco de excluir a esquerda da governação, vinda inclusive de sectores da imprensa conservadora europeia.
A ESQUERDA POSTA À PROVA
Para a esquerda, o desafio é enorme. Estando os limites orçamentais traçados e os compromissos internacionais do país assumidos e consagrados, terá de mostrar que é capaz de governar com esses constrangimentos e fazer melhor do que a direita. É quase a quadratura do círculo que lhe é exigida. Mas é também uma oportunidade histórica de pôr termo não só ao anátema de que era vítima como também de desmentir as ideias feitas que sobre ela existem.
O programa que apresentou, mais do que uma mera soma de pontos que em grande parte revertem algumas das medidas mais gravosas do governo anterior, incluindo reposição de salários do funcionalismo e pensões de reforma, representa uma viragem significativa, quer política, quer social e económica.
Trata-se de lançar um modelo que, com base em um pouco mais consumo, produza uma dinâmica de maior desenvolvimento para gerar mais receita fiscal. E ao mesmo tempo reintroduza um padrão de maior civilidade e probidade na política nacional.
Tudo sem radicalismos, mas numa base mais justa, com impostos progressivos e abrindo mais espaço para as classes médias respirarem, designadamente através da revisão dos escalões do IRS.
Numa velha fórmula consagrada a leste, trata-se de “alimentar os lobos, mas salvar o rebanho”.
Vai consegui-lo? Difícil prever. A experiência de diálogo à esquerda é nova, os adversários são muitos, a desconfiança enorme e a benevolência que se possa esperar das instituições europeias, hoje dominadas pela visão neo-liberal, não é grande, para dizer o mínimo.
Mas o extremo a que se chegou nestes últimos quatros anos foi tal, que qualquer alívio já representará um progresso.
Na certeza de que um falhanço fará a esquerda perder tudo o que poderá alcançar se conseguir manter-se unida, restituindo à direita, de forma reforçada, a legitimidade que agora soube arrebatar-lhe.
Uma coisa é certa – depois daquilo a que assistimos nestas últimas semanas, nada voltará a ser como dantes na política portuguesa.
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O que muda se houver governo de esquerda http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?content_id=4874687